terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Teses, antíteses, ficções e realidades


Metodologia é um esse palavrão sonoro e chato, mas pode muito bem ser objeto de um livro inteligente e divertido. Para além de compor um manual prático destinado a acadêmicos preguiçosos que precisam tecer teorias em forma de projetos científicos de conclusão de cursos superiores – como acontece na Itália, mas não exatamente aqui, onde isso se dá em nível de pós-graduação – o ensaísta, romancista, especialista em semiologia e outros istas em proporção de dízima periódica Umberto Eco preparou essa divertida aventura disfarçada de livro didático que é COMO SE FAZ UMA TESE.

A editora Perspectiva não pensou duas vezes e tascou o título umbertiano na sua coleção “Estudos”, classificação tanto fiel quanto irônica quando nas mãos de um pensador contemporâneo que sabe como poucos misturar conselhos acadêmicos do tipo entrelinhamento recomendado para a redação final com pitadas intelectuais mundanas daquela espécie que vai logo desmanchando as ilusões do mais diletante dos estudantes. Como se dá na “dica” a seguir, salpicada na página 18 da edição brasileira: “fazer uma tese significa ir além das fórmulas popularizadas pelos manuais escolares, do tipo ‘Foscolo é clássico e Leopardi é romântico’, ou ‘Platão é idealista e Aristóteles é realista’, ou ainda ‘Pascal defende o coração e Descartes a razão’”.

É esse o tipo de pedagogia superior que Umberto Eco pratica ao longo de seu ensaio didático: uma orientação prévia para quem deseja se embrenhar na selva da elaboração de uma tese acadêmica cheia de provocações ao aluno que buscava apenas um receituário pronto, distante, objetivo. Nada como a subjetividade para temperar essa aula útil inclusive para quem não tem o menor interesse em fazer estudos acadêmicos –pelo menos não da forma tradicional – e sente coceira só de passar por perto de um daqueles entrocamentos urbanos engarrafadíssimos que dão acesso a um campus universitário metropolitano. O livro de Umberto Eco é, antes, uma aventura intelectual que nos mostra o quanto uma mera tese pode favorecer o projeto pessoal de alguém que ambiciona abraçar, sistematizar, organizar, cotejar e relacionar em itens, propostas, conclusões a sua visão de determinado problema deste mundão – o que, por mais particular que seja o assunto enfocado, e Eco lembra a necessidade de se fechar o foco desse problema com a maior exatidão possível, será sempre o espelho de uma situação maior quanto melhor realizado for o referido trabalho.

Em resumo, o que o senhor Umberto Eco nos diz, com a autoridade de quem teve paciência de organizar milhares de idéias, elementos, pistas, evidências, fatos e não fatos e devolvê-los ao leitor impaciente em forma de romances impecáveis como “O Pêndulo de Focaut” é que fazer uma tese pode ser um exercício para toda a vida – além de ser algo bem divertido se você encarar o desafio com as reais perspectivas que ele oferece.

Jornalismo novinho

Inteligente, divertido, extremamente bem escrito e – numa palavra que resume todos os adjetivos anteriores – absolutamente instigante são as 88 páginas, incluindo bibliografia citada e sugerida, de JORNALISMO LITERÁRIO – UMA INTRODUÇÃO, da lavra do nosso amigo Gustavo de Castro. Trata-se aqui de um pequeno, mas estimulante ensaio tão didático quanto o COMO SE FAZ UMA TESE de Eco – e igualmente destinado a estudantes, no caso específico, de Comunicação/Jornalismo. Era uma apostilha que Gustavo reeditou em livro e foi feita segundo o autor justamente para atender à demanda de estudantes sedentos por saber mais – e de forma sistematizada, digamos, compilativa num mesmo lugar – sobre o Novo Jornalismo, aquele de Gay Talese, Truman Capote e (meu preferido entre eles) Tom Wolfe. Para estudantes, vírgula - que não seria nem um pouco dispensável na biblioteca de noventa por cento dos jornalistas em ação no doce mercado atual.

Acontece que Gustavo poderia ter dado uma de professor em condições de superioridade sobre alunos ansiosos e só. Mas, não. Assim como Eco, a estrada acabou mas ele continuou caminhando numa trilha por ele mesmo inventada. Produziu, mais do que um outro desses manuais práticos para estudantes desajeitados, um belo ensaio sobre os (em muitos casos, difíceis e quase inexistentes) limites entre jornalismo e literatura. Embora eu não veja o jornalismo como uma forma de arte – uma idéia que Gustavo abraça com quem se atraca com um xique-xique, sangrando mas sem sentir dor – concordo com ele pelo menos na aproximação. E essa feliz discordância – pois é bom possível que muita gente fique na dúvida, e é no mínimo saudável que seja assim, pois denota ao menos interesse por uma forma diferenciada de relatar jornalisticamente a realidade – dá uma nova sustentação ao livro, faz com que voe muito mais alto do que sugere ou permite uma abordagem didaticamente tradicional.

Há parágrafos e parágrafos que fazem o leitor-estudante ou profissional soltar os pés do chão no afã de pisar as nuvens desse gênero jornalístico que não se contenta com o quê, quanto, quem e por que danado zezinhos fez tal coisa a mariazinha. Na sua especulação sobre saber literário em oposição – ou em conjunção – ao saber jornalístico, Gustavo redige considerações como esta (um momento em que francamente se coloca a favor do primeiro, como a justificar sua utilização pelo segundo): “Talvez seja por isso que a literatura ainda é o realismo possível mais indicado, sem contraindicações, ainda que incautos, ignorantes e soberbos a considerem uma abstração. A única razão de ser da literatura consiste em dizer aquilo que só a literatura pode dizer, trata-se de esclarecer narrativamente o mundo da vida, aventurando-se no reino das possibilidades humanas. O mundo real se ilumina de forma peculiar quando sobre ele se projeta o saber literário.”

Cruel sem ser cínico

Gustavo está falando do saber literário, mas numa fronteira bem próxima do saber jornalístico muito especial de pessoas como a repórter Eliane Brum, uma gaúcha introspectiva que se encontrou na redação do jornal Zero Hora e de lá saiu para montar sua barraca de frases sensíveis e coloquialmente geniais na revista Época. Mas não foi nem em um nem em outro que li suas sentenças informais que, à guisa de funcionarem como pena, resultam em estudos – jornalísticos, o que não é algo fácil de conseguir – sobre a alma humana mais invisível na multidão da metrópole formiguenta. Estou falando do livro A VIDA QUE NINGUÉM VÊ, coletânea da coluna de mesmo nome que Brum escreveu para a Zero Hora e acabou editada e livro pela Arquipélago Editorial. Dificilmente poderia haver um livro mais indicado para se ler depois de sorver o estudo de Gustavo de Castro sobre o jornalismo literário – que ele chama, como que invertendo a expressão, esqueci de dizer, de “literatura da complexidade”.

Porque poucos no Brasil colocaram em prática essa forma mundana de literatura da complexidade como faz Eliane Brum nos textos reunidos neste A VIDA QUE NINGUÉM VÊ, titulo da coluna que, obviamente, é uma referência quase explícita a outro momento ímpar – e literariamente rico, e jornalisticamente milionário – da imprensa brasileira, o mais que conhecido “A vida como ela é” de Nelson Rodrigues. Eliane Brum recolhe perfis pelas ruas, revalorizando ao extremo do bom gosto, da sensibilidade, da paciência e da humildade que não mais viceja entre a classe jornalística aquilo que há tempos o também repórter Ricardo Kotscho procurava fazer, no que os colegas maldosos – e desde então já bem vaidosos – chamavam de “matéria de pipoqueiro”. Qual nada: Eliane poderia oferecer a esses mesmos insensíveis da pauta uma pletora de alcunhas irmãs, como “matéria de morador de rua”, “reportagem de carregador de mala”, “notinha de professora que salvou trombadinha” e daí por diante.

Inverta-se a contenção do apelido redutor e se terá um pista do que é este A VIDA QUE NINGUÉM VÊ. Nele, está, com a graça da prosa de Eliane Brum (muitas vezes cruel, mas nunca cínica), o registro ampliado da dor de cada um, como o desempregado que enterra a filha num dia e a mulher praticamente no outro, o velhinho dos comerciais de Natal que traz na biografia oculta pela face preferida das agências de publicidade uma nefasta história de perdas, a garota que recorre à seleção de adjetivos e diminutivos para compor sua gramática particular de pedinte no sinal de trânsito – “Tio lindo, tia linda do coração... um trocadinho para essa pobre garotinha...” . Ou ainda as deformações físicas que contribuem à sua maneira pra dar um mínimo de dignidade contrastante a uma certa Eva, “mulher que cometeu um crime que a humanidade não perdoa. Recusou-se a ser vítima”. Sobre ela, narra Brum: “Em troca da moeda, devolveria ao doador o alívio não apenas da caridade, mas o outro, secreto: a garantia de que a deformidade, assim como a loucura, está sempre no outro.” E diz mais: “Como ousava Eva, justo Eva, ser imperfeita em um mundo onde se paga para que todos sejam igualmente perfeitos? Como ousava Eva ser diferente em um mundo onde a igualdade das idéias é a única garantia de segurança? Como ousava Eva vencer pelo espírito no mundo da aparência?”

Assim como a dor que ninguém vê, também é matéria de jornalismo para esta Eliane Brum a alegria incontida de gente sem o menor motivo para guardar nos olhos o brilho de uma energia sem preço, como a mãe de família analfabeta e de vida errante que descobre, tarde mas a tempo, a magia da leitura. Ou o carregador de malas do aeroporto que está sempre a um passo das asas dos aviões sem a menor possibilidade objetiva de um dia tirar os pés do chão junto com elas – a bordo de uma delas. Um típico personagem da era pré-Lula – como, por sinal, grande parte de todos os outros que Eliane encontrou por aí na invisibilidade do mundo brasileiro dos anos 80 e 90 – que, afinal, acabou voando bem antes do advento deste outro tempo, graças a uma cortesia do pessoal da TAM que acabara de ler a crônica-reportagem sobre o referido cidadão.

Nesta semana de muitas compras de presentes de Natal, há sempre alguém metido em dilemas sobre o que dar para outro alguém de quem se gosta muito. A VIDA QUE NINGÚEM VÊ desmancha qualquer dilema, na qualidade de presente que, mais do que o fetiche do objeto livro que enfeita estantes e vai bem ao sentido tátil das mãos em meio à ceia familiar, contém em seu interior – e da forma menos piegas possível, pode ficar tranqüilo – a natureza daquilo que pais, mães, irmãos, tios, sobrinhos, primos e avós costumam chamar, na falta de designação mais conveniente, de “espírito natalino”. De verdade, sem mistificações – que o que mais Eliane Brum odeia, segundo palavras dela mesma num posfácio explicativo, é o mito. Prefere a pessoa real, acha muito mais rica. Coisas do jornalismo literário – e eu fico imaginando o que seria um livro dessa jornalista, sem as habituais pedras nas mãos ou a igualmente prejudicial aprovação prévia, sobre esse mito que se despede que é Lula. Esse Papai Noel governamental que venceu a própria invisibilidade para instalar novos impasses na ceia permanente com ou sem comida da família brasileira.

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