sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Colagem de absurdos


Fernando Bonassi é um dos nomes festejados entre certos segmentos da nova ficção brasileira, tanto literária quanto audio-visual. É autor ou co-autor de roteiros de filmes como "Cabra Cega" e seriados como "Carandiru". Escreveu o texto base de uma das encenações teatrais mais comentadas do Brasil recente, o Apocalipse 1.11 - aquele de célebre montagem pelo Teatro de Vertigem. Mas o que me interessava nele era mais a literatura propriamente dita, queria conhecer a narrativa de Bonassi. Pra ser honesto, tenho de dizer que queria conhecer melhor a prosa dos novos autores brasileiros - essa gente cultuada que ora estrela ora rejeita eventos como a Flip e seus derivados. Esse pessoal de letras urbanas que parece ignorar o leitor de maneira manifesta tanto quanto deve desejar sua admiração de forma sublimada.

Resumindo: conservador como o diabo e sempre muito desconfiado desses cultos de caderno B e revista Bravo, queria ler na fonte os tais novos escritores brasileiros que quase arrancam os cabelos toda vez que Chico Buarque, esse demônio no index da revista Veja, ganha um prêmio. Marçal Aquino já li - pouco, mas gostei (o conto que ele começou a escrever e deu origem ao filme "O Invasor", sendo concluído somente depois de pronta a fita). Marcelino Freire, idem - onde encontrei uma estética própria, rica e plasmada da algavaria das ruas do Brasil real sem que isso represente uma opção literária intransponível para o leitor que busca imersão numa história. Falta ler o pedantismo de um Marcelo Mirisola, entre outros. Mas foi em Fernando Bonassi que esbarrei, da maneira menos nobre possível - e é bom que os escritores, sobretudo os novos, tenham consciência de que é muito mais assim, no acidental sem charme e sem caráter, que seu leitor o encontra por aí.

Quero dizer que achei este "O menino que se trancou na geladeira" numa daquelas estantes promovionais de livraria de shopping. Dez paus. Nove e noventa e nove. Abri e como sempre li o primeiro parágrafo, que é o ponto chave que me leva ou não a seguir adiante (a maioria das pessoas, é curioso, lê primeiro o fim, como se dele pudesse deduzir a qualidade do que lhe antecede). Do primeiro parágrafo, passei à primeira página, à segunda e, quando vi, estava aí pela página 10. Bom sinal. Ou uma armadilha. Ou um meio termo, que foi o que se confirmou quando enfim levei o livrinho pra casa e o encarei com olhos de leitor acabrunhado em selva de prosa pretensiosa e moderna.

Fernando Bonassi é bem pretensioso, como muitos dessa nova geração. Ele compõe um livro de narrativa que não é propriamente surreal, embora assim pareça à primeira vista, mas situada acima ou paralela à realidade.O livro é um painel de colagens de imagens que se pretendem mais absurdas do que o panorama do planeta Brasil que o inspira e o sustenta. É atraente e tentador na sua primeira metade, ao construir um retrato torto de um país pouco reto, composto por uma classe imprensada entre ricos e miseráveis - que ele chama de Imprensados do Meio - onde tudo deriva de um sindicalismo de estirpe kafkiana e em que se fala e se pensa em um para-idioma cujos neologismos traduzem muito bem o estado geral - e deplorável - das coisas. Analfabetismo, por exemplo, é "analfobetismo". Psicanalistas são "psicanagistas".

No conjunto, o resultado lembra o Chico Buarque (olha ele aí) autor de letras como a de "Não sonmho mais" - aquela outra colagem estético-escatológica feita para traduzir em música o clima de um filme apropriadamente chamado "República dos Assassinos". O clima é o mesmo. Mas há também, para o leitor potiguar, um diálogo inusitado pela geografia humana - e que, por fim, denuncia a debilidade deste Bonassi quando se ultrapassa a metade do livro. É com o nosso Alex Nascimento de "Quarta-feira de um país de cinzas", um clássico potiguar da década de 80, vigoroso, sarcástico e bem-humoradíssimo retrato do Brasil de então - e, acredite, imensamente superior a este Bonasse de festejos atuais. Fosse Alex Nascimento um escritor do Sul Maravilha - essa entidade que, internet sertanizada à parte - ainda resiste (e como) e estaria derretendo ouro nas páginas das publicações culturais da platinada editora Abril. Como não é, deixa pra lá...

O pecado de Bonassi (pelo menos neste livro) é algo que Alex, com sua inteligência e seu bom gosto, não comete, nem por uma certa soberba que poderia muito bem provincianamente cultivar: o desprezo pelo leitor. Nâo há como a criatura mais imersa nas imagens construídas neste "O menino que se trancou na geladeira" não se encontrar em determinado momento perdida na esquina de suas colagens mais arbitrárias. Porque até o nonsense mais foribundo precisa de algum nexo, caso contrário perde a força. O sentido é outro - mas precisa estar lá e ser minimamente coerente. Alex fazia isso em "Quarta-feira" com o dedão do pé esquerdo coçando o cotovelo direito. Bonassi, como diria um leitor caicoense sem vergonha de suas origens, fica se amostrando. Marcelino Freire tem muito o que ensinar a ele - e não é à toa que, bairrismos à parte, seja nordestino por derradeiro.

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