domingo, 26 de dezembro de 2010

Um santo para os ateus


Se existem diversas gradações no ateísmo, José Saramago professou a mais mística dentre elas. Porque o ateísmo de Saramago, de tão redundantemente afirmado, de maneira a parecer quase uma segunda pele sobre a crosta de células de sua sábia e idosa pessoa, acabava parecendo uma estranha – mas bela – forma de fé invertida. É como dizer que Saramago, o autor foribundamente humano de livros misticamente ateus como "A Jangada de Pedra" fosse, na verdade, o mais crente dos mortais – e tanto mais o fosse quanto mais distante de deus se posicionasse. Quisera esse mesmo deus que todos os seus professados fiéis de carteirinha, batina ou apenas da boca pra fora tivessem um centésimo da crença atéia que lhe teve, de maneira inversa mas não menos verdadeira, o teimoso Saramago. Se assim fosse, o reino dos céus estaria coalhado de boas almas – o que, da perspectiva aqui da Terra, nem sempre parece corresponder à realidade divina.

Essas abstrações sobre fé atéia e ateísmo místico me ocorrem enquanto assisto, embasbacado de satisfação e pleno de reflexões, ao belíssimo – e imperdível, para quem tiver a chance de apreciar – filme JOSÉ E PILAR, documentário que mostra, para além da rotina (aliás, inexistente) do escritor português, sua relação com a mulher e companheira inseparável Pilar, sua moradia na ilha de Lanzarote, locação tão inóspita quanto poética em sua aparente rusticidade geológica e atmosférica (de tanta pedra e tamanha ausência de verde, lembra mais um poema de João Cabral de Melo Neto do que um sítio a se ter por moradia), suas viagens, compromissos, homenagens, pequenas mágoas (como a que tempo por seu Portugual, como a ratificar uma antiga tradição que opõe grandes autores aos seus torrões natais, Drummond que o diga), manias, debilidades, forças e fraquezas. É o que se poderia chamar de documentário sentimental, como um diário filmado onde José e Pilar parecem uma versão mais literária, mas nem por isso menos pop, de Lennon e Yoko antes do assassinato. Transborda do filme certo ascetismo no dia a dia do casal – onde a pungente energia dela é o complemento perfeito para a quase sacra rarefação dele – que casa mais com a santidade de certos personagens cristãos do que com determinada mundanidade de algumas celebridades da seara literária.

Isso, junto com o cenário onde o casal se movimenta, com seus ventos e suas pedras, mas a corte que lhe fazem estudantes, leitores e especialistas, vai conferindo à dupla José-Pilar essa aura humanamente santa, de quem mais acredita do que duvida do transcendental - embora afirme e sustente conscientemente o contrário. Por sinal, como pode uma mente capaz de investigar tanto a fragilidade quanto a grandeza humana com a destreza que faz Saramago em seus livros ser ao mesmo tempo incapaz de enxergar qualquer possibilidade de transcendência após a morte – pra gente ficar num questionamento menor, bem anterior à existência ou não de um entidade chamada deus? Quando mais se avança no filme – que chega às raias da mortalidade do escritor – mais a indagação se impõe. Apenas para que Saramago siga negando qualquer possibilidade de fé acima da reles humanidade de cada um de nós, enquanto o espectador fica mais e mais cismado com a negação, com a dúvida e com a ironia de essas duas coisas se encontrarem e se esbarrarem na esquina de uma pessoa como ele – e de tudo isso aparecer tão limpidamente quanto neste filme.

* Clique aqui para assistir ao trailler do filme.

* Mais sobre isso aqui.

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