segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

As cidades litetárias de C. Buaque


Não tem nada a ver com essa polêmica de proveta sobre o prêmio Jabuti, mas a verdade é que estou no time dos que preferem o Chico Buarque músico, compositor – e até cantor – ao escritor, embora não desconsidere a validade do fato de ele se experimentar em outros meios, como já fez com muito maior impacto, por exemplo, no teatro – vide a GOTA DÁGUA, em parceira com Paulo Pontes, e o CALABAR, com Ruy Guerra. Mas mesmo diante de gigantes como Chico Buarque, a gente tem o direito de ficar assim-assim. Que é como eu fico sempre que leio uma das ficções dele – o que fiz até agora apenas duas vezes, com ESTORVO e BENJAMIM – mas acho que o suficiente para captar a atmosfera de sua escrita. Digo isso não apenas para aproveitar a deixa da tal polêmica de proveta, mas porque no final de semana finalmente pude assistir à adaptação de BUDAPESTE e, encerrada a sessão caseira, fiquei com uma impressão bem próxima à de quando fechei as páginas dos dois livros já citados. Na minha cabeça de leitor e espectador, ocorre o seguinte: o Chico criador de personagens musicais tão ricos, sugestivos e impressionantes – vide a Geni do Zepelin, o funcionário e a dançarina que nunca se encontram, o Guri que traz presentes roubados para a mãe e o artista em crise da canção Roda Viva, entre tantos outros – não consegue criar similares de igual impacto em forma de literatura. O que, na música, ele consegue fazer com meia dúzia de versos de uma composição que no nível dele pode ser até banal, em livro se esgarça e se perde, pulverizando o impacto quanto mais é explorado em parágrafos e parágrafos de narrativa. Enfim, o que há de síntese certeira em letras como a do SUBURBANO CORAÇÃO, para ficar num exemplo só, vira dispersão naquelas personagens meio sonâmbulas de urbanidade perdida em BENJAMIM.

Claro que são meios diferentes – a canção e a ficção, a música e a literatura – mas também não há como o brasileiro, tendo passado a vida a ouvir Chico Buarque, tendo aprendido com ele o evangelho melódico e rítmico de boa parte do que se considera a tradição de uma das melhores músicas do mundo, não esperar desfrutar de um mínimo desse mesmo talento e prazer estético quando diante de um de seus livros.

Da leitura do ESTORVO, guardei impressões esfumaçadas de certa realidade intangível e sufocante – um mundo percebido em brumas de umidade angustiada. O livro inteiro me pareceu assim como o resultado de um jato de água como esses que aparelhos de irrigação modernos lançam no ar sobre plantações infinitas, com aquelas gotículas abstratas que, sim, fazem sentido quanto juntas, mas vá se deter em cada uma em particular e o resultado é bem vago. Escapa da sua atenção, foge ao raciocínio imediato, desliza feito sabão por maior que seja a qualidade da inquirição dos seus olhos. Ah, sim, ESTORVO, como ademais os outros livros de Chico, é o tipo da narrativa lírica que aborda muito mais o ponto de vista do personagem-narrador do que uma sucessão de fatos e eventos que resultam em alto mensurável em termos reflexivos. Mas mesmo levando em conta o condicionamento desse gênero – também muito comum no cinema e, até certo ponto, muito rentável quanto vertido em imagem, como ademais a adaptação de ESTORVO, superior à de BUDAPESTE confirma – deixa no paladar do leitor um sabor aguado de escrito incompleto. Pelo menos em mim deixou.

Da leitura de BENJAMIM, ficou a marca de algo feito absolutamente à base de personagens salpicados na tela de um mural urbano-psicológico ligeiro, sem pretensão de abarcar tudo mas muito apegado à coloração de seus tipos para soar verdadeiro. Digo melhor, de esboços de personagens que nunca aparecem por completo: é sempre uma gente composta com pedaços de personalidade, vestígios de vestimentas, fragmentos de perfis, como se o escritor fugisse da totalidade de suas criações – meio como se deixasse para o leitor completar, o que é comum e elogiável entre os críticos, meio como se ali estivessem, lutando para sobreviver na superfície oceânica do romance, as mesmas criaturas que tão pouco precisam fazer para passear sobre as águas das canções.

A diferença é que, nas letras, basta uma ou duas pinceladas, desde que marcantes o suficiente, para a criação se fazer notar e a canção se garantir, crescer e iluminar a audição do admirador de Chico. Vejamos a IRACEMA daquela música feita para um filme que, não ficando pronta a tempo, acabou incluída no CD AS CIDADES (Iracema voou, para a América / Usa roupa de lã e anda lépida... tem saído ao luar, com um mímico / ambiciona estudar canto lírico / vê um filme de quanto em vez / não domina o idioma inglês / lava chão na casa de chá). A soma dessas várias pistas sobre a mesma mulher, reunidas em cacos colados como os restos de uma porcelana que se espatifa no chão constitui uma criação inteira e intocável – autônoma em sua construção falsamente dispersa.

Isso se dá com perfeição e sucesso porque a cola que atravessa e dá consistência à criação dessa Iracema é a matéria compacta de uma letra de música, de tamanha concisão auditiva que torna-se perceptível ao mais remoto assobio.
Mas quanto o Chico Buarque tenta transferir tudo isso para a caudalosidade do romance, essa Iracema se dilui e se perde. E como, em BENJAMIM (que não tem Iracema nenhuma, isso aqui é só uma comparação grosseira), os personagens existem meio que acima do mundo real, sem uma narrativa para além deles que os situe minimamente – o que interessa no romance, como já disse, é o lirismo do ponto de vista deles e só – mais cedo ou mais tarde a leitura se distrai, o impacto se esvai e o interesse se degela, frio e morno. Em Chico Buarque, a música popular, pode-se dizer com base naqueles princípios de antigamente, é uma “arma quente”. Já a literatura...

No caso de BUDAPESTE, não cheguei a ler o romance – que, por algumas sequencias do filme, imagino ser bem superior à sua adaptação cinematográfica – mas encontrei na minha sessão caseira indícios daquelas mesmas sensações que cercaram a leitura de BENJAMIM e ESTORVO. A mesma dispersão narrativa, idêntico lirismo borrado abrigando qual capa de chuva inútil seus personagens molhados de sensações vagas, a mesma perplexidade frente à realidade e ao mundo interior das pessoas e das coisas que marcam a literatura de Chico Buarque, de uma maneira que faz seu romance soar sempre mais performático do que necessitam ser suas mais comezinhas canções. Mas há um agravante, o que também explica o fato de ter achado BUDAPESTE uma adaptação bem inferior à de ESTORVO, feita há alguns anos por Ruy Guerra (e digo isso ciente de que fica difícil julgar uma adaptação sem ter lido o livro original, usando apenas o quadro de referências anterior de dois livros e um filme).

Ocorre que o que BUDAPESTE poderia ter de melhor, que é o cruzamento de comparações entre a capital da Hungria e a cidade do Rio de Janeiro – o que, por si só, já confere uma paleta cinematográfica a priori para o filme – acaba por se tornar um fator prejudicial, e não favorável como parece a princípio. Porque se os planos de Budapeste, a cidade, dão um alento visual e tanto a BUDAPESTE, o filme, tampouco servem para lhe dar uma circunstância mais precisa, que faça o filme se distanciar da qualidade vaporosa da prosa de Chico. ESTORVO, ao não contar com esse tipo de recurso, resultou em um filme absolutamente abstrato, no mesmo grau de subjetividade do livro. E nisso, nessa coerência, construiu sua especificidade. Saiu um filme mais íntegro, vivo, com uma tensão, digamos, imensurável, presente do início ao fim.

Em BUDAPESTE, não: há o veio da comparação entre Rio e a capital húngara, há as escaramuças da vida social do protagonista, há a crítica da civilização carreirista sob a moldura da paisagem carioca, há os tormentos internos do ghost writer que estranhamente sofre mas segue desempenhando tal profissão, há o mais do que gasto apelo à metalinguagem mais constrangedora – e há, inclusive, o que o filme tem de melhor, pra mim, que são as sequências em que o narrador explora sua relação com as palavras, especula sobre a natureza dos sons, discorre sobre os mistérios e fascínios do universo vocabular da língua portuguesa. Tudo isso com textos escritos sobre o papel da pele de belas mulheres. Mas, dessas várias vertentes, resulta um filme com muito sexo e pouca tensão, vastas possibilidades e escassas considerações. Não por acaso é um típico filme de produtor e fotógrafo – seu diretor é o consagrado pintor de telas em movimento Walter Carvalho, sua produtora a elogiada Rita Buzar – que tanto quanto lapida determinados trechos em particular negligencia o resultado geral do que é e do que poderia ser o filme.

Depois dessa visão de BUDAPESTE, até que aumentou minha curiosidade sobre o livro que deu origem ao filme como o próximo Chico Buarque a ser lido, mas caiu em conseqüência meu interesse pelo LEITE DERRAMADO que é seu livro seguinte e falso objeto da polêmica do Jabuti. O meu temor é de encontrar mais um pacote de angústias dispersas e criaturas que expressam um milhão de seres humanos numa balada como VALSINHA, mas parecem apenas manchas impressas – ou quando muito caricaturas urbanas – em livros como BENJAMIM. As cidades de Chico Buarque, fica claro nesses percursos entre músicas, livros e filmes adaptados, são metrópoles artísticas que fazem mais sentido à audição compactada do que à vastidão da literatura. Mas ninguém pode repreendê-lo por continuar tentando. Dito isso, posso dizer que no final das contas o melhor livro de Chico Buarque continua sendo o CHAPEUZINHO AMARELO que ajudou Cecília, bem mais criança do que é hoje, a não temer mais o lobo-lobo-lobo-bolo-bolo.

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