Um compromisso profissional, a edição de uma série de entrevistas dispersas sobre o aquecimento global, me levou a rever o filme de Al Gore, "Uma verdade inconveniente". Documentário muito celebrado, que eu já havia visto no cinema mesmo, quando passou aqui em Brasília, até meio despercebido numa daquelas salas minúsculas (mas sossegadas) do Liberty Mall. Ao contrário de meio mundo, não me impressionei muito com o filme estrelado por Al Gore, o político que perdeu por um triz, pra dizer o mínimo, a eleição presidencial americana para George W. Bush. Mas não sabia exatamente por que o filme não havia me causado maior impressão. Assistindo novamente, numa telinha pequena mas bem focada de um aparelho de DVD portátil, matei a charada: descobri que o austero, elegante e injustiçado Al Gore tem muito mais semelhanças com o chato do Michael Moore do que julga a nossa vã opinião midiática.
O que é que faz Michael Moore em filmes como aquele que mistura 11 de setembro com interesses da indústria do petróleo? Força uma teoria, ilustra sua tese da maneira mais espetacular possível, apela para personagens reais em situações limites que legitimam tudo isso e por fim enfia tudo goela abaixo do espectador, numa montagem que não lhe dá tempo para pensar em nada, para duvidar de nada, para flexibilizar o que quer que seja. Aboletado na poltrona do cinema, você é um prisioneiro da tese que Mr. Moore verte em imagens acelaradas na tela. E, sim, claro, isso tudo é feito com um certo toque de humor às vezes muito televisivo, outras vezes filtrado de uma certa ironia intelectual de botequim que também cai muito bem. E eu fico lembrando daquela cara que Paulo Henrique Amorim fazia quando apresentava telejornais na Globo depois da exibição de uma matéria mais incisiva: - Entendeu, otário?
Bom, isso é Michael Moore. E o que é Al Goore? É um gentlerman, um apresentador galante, um professor alinhado e didaticamente corretíssimo. É o que parece à primeira vista, mas numa segunda leitura, mais atenta, o que se vê em "Uma verdade inconveniente" - para além do conteúdo mesmo da tese apresentada no filme - é a apologia de uma idéia defendida até as últimas conseqüência, mas sempre em forma de espetáculo. Al Goore também usa todos os truques da boa ilusão cinematográfica para defender seu ponto de vista sobre o aquecimento global: a motivação preservacionista surgida após o episódio dramático com o acidente que o filho sofreu, seqüências e mais seqüências de lembranças infanto-juvenis da fazenda da família onde cresceu, cenas e mais cenas que o mostram reflexivo, pesadamente responsável pela preservação natural, enquanto faz anotações em vôos por sobre o nosso devastado mundo. Até mesmo o episódio da perda da eleição naquela apuração maluca para Bush ele utiliza como motor de sua estratégia audio-visual em conquistar o espectador para sua tese.
Nem é o caso de expor ou discutir aqui a tese. A questão, no caso do filme, é a anterior. É a forma como essa tese é defendida. A palestra-show de Al Gore passa uma impressão de racionalidade. Os momentos familiares humanizam a exposição de temas tão inconvenientes como o risco de extinção da vida no planeta. Mas num e noutro momento o que acontecé um processo de persuação que não permite ao espectador reagir sozinho ao que está sendo dito ali. Você não tem sequer tempo para isso. Falta um mínimo de ambiguidade, um tantinho assim de contraditório. Em um tema em que, efetivamente, existem pontos de vistas contrários - ou bem menos extremos - vindos de cientistas tão gabaritados quando o showman Al Gore (ou mais, é de se dizer) teria que haver um espaço que fosse para colocar alguma dúvida em cena. Mas o que o candidato derrotado faz é ridicularizar todas as posições em contrário, redundindo a piadas de balcão o pensamento de quem, a sério, não vê o quadro de devastação global nos mesmos termos que ele. Pense bem: quem é que faz exatamente isso com quem discorda dele? Michael Moore.
E assim vamos indo: Bush vira o demônio supremo do mundo, Gore é o santinho da hora. É assim, de estereótipo em estereótipo, que o mundo vai tomando as feições que tem hoje. E o garoto ecologista e avançado que considera o presidente dos EUA a encarnação do mal na Terra nem se dá conta de que o critica exatamente com os mesmos termos que ele, o presidente, utilizou para demonizar Sadam. Não importa, ninguém pára para pensar - importante é manter a cadeia opinativa em ação. E filmes como "Uma verdade inconveniente" alimentam essa máquina de meias verdades com sua desonestidade intelectual disfarçada de seriedade científica.
O que é que faz Michael Moore em filmes como aquele que mistura 11 de setembro com interesses da indústria do petróleo? Força uma teoria, ilustra sua tese da maneira mais espetacular possível, apela para personagens reais em situações limites que legitimam tudo isso e por fim enfia tudo goela abaixo do espectador, numa montagem que não lhe dá tempo para pensar em nada, para duvidar de nada, para flexibilizar o que quer que seja. Aboletado na poltrona do cinema, você é um prisioneiro da tese que Mr. Moore verte em imagens acelaradas na tela. E, sim, claro, isso tudo é feito com um certo toque de humor às vezes muito televisivo, outras vezes filtrado de uma certa ironia intelectual de botequim que também cai muito bem. E eu fico lembrando daquela cara que Paulo Henrique Amorim fazia quando apresentava telejornais na Globo depois da exibição de uma matéria mais incisiva: - Entendeu, otário?
Bom, isso é Michael Moore. E o que é Al Goore? É um gentlerman, um apresentador galante, um professor alinhado e didaticamente corretíssimo. É o que parece à primeira vista, mas numa segunda leitura, mais atenta, o que se vê em "Uma verdade inconveniente" - para além do conteúdo mesmo da tese apresentada no filme - é a apologia de uma idéia defendida até as últimas conseqüência, mas sempre em forma de espetáculo. Al Goore também usa todos os truques da boa ilusão cinematográfica para defender seu ponto de vista sobre o aquecimento global: a motivação preservacionista surgida após o episódio dramático com o acidente que o filho sofreu, seqüências e mais seqüências de lembranças infanto-juvenis da fazenda da família onde cresceu, cenas e mais cenas que o mostram reflexivo, pesadamente responsável pela preservação natural, enquanto faz anotações em vôos por sobre o nosso devastado mundo. Até mesmo o episódio da perda da eleição naquela apuração maluca para Bush ele utiliza como motor de sua estratégia audio-visual em conquistar o espectador para sua tese.
Nem é o caso de expor ou discutir aqui a tese. A questão, no caso do filme, é a anterior. É a forma como essa tese é defendida. A palestra-show de Al Gore passa uma impressão de racionalidade. Os momentos familiares humanizam a exposição de temas tão inconvenientes como o risco de extinção da vida no planeta. Mas num e noutro momento o que acontecé um processo de persuação que não permite ao espectador reagir sozinho ao que está sendo dito ali. Você não tem sequer tempo para isso. Falta um mínimo de ambiguidade, um tantinho assim de contraditório. Em um tema em que, efetivamente, existem pontos de vistas contrários - ou bem menos extremos - vindos de cientistas tão gabaritados quando o showman Al Gore (ou mais, é de se dizer) teria que haver um espaço que fosse para colocar alguma dúvida em cena. Mas o que o candidato derrotado faz é ridicularizar todas as posições em contrário, redundindo a piadas de balcão o pensamento de quem, a sério, não vê o quadro de devastação global nos mesmos termos que ele. Pense bem: quem é que faz exatamente isso com quem discorda dele? Michael Moore.
E assim vamos indo: Bush vira o demônio supremo do mundo, Gore é o santinho da hora. É assim, de estereótipo em estereótipo, que o mundo vai tomando as feições que tem hoje. E o garoto ecologista e avançado que considera o presidente dos EUA a encarnação do mal na Terra nem se dá conta de que o critica exatamente com os mesmos termos que ele, o presidente, utilizou para demonizar Sadam. Não importa, ninguém pára para pensar - importante é manter a cadeia opinativa em ação. E filmes como "Uma verdade inconveniente" alimentam essa máquina de meias verdades com sua desonestidade intelectual disfarçada de seriedade científica.
Um comentário:
Tião,
Muito boa a sua análise. E eu acrescentaria um grande problema de muitos documentários e filmes de conotação social e/ou política. O diretor e o roteirista (às vezes a mesma pessoa) jogam a sua "mensagem" na cara do espectador e o seu filme se torna um panfleto. É preciso que o espectador tenha muito senso de crítica e esteja por dentro também da estética cinematográfica. Um abraço.
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