Burt Lancaster é a altivez em pessoa, mesmo derrotado, humilhado e em estágio pra lá de terminal na "Atlantic City" do filme de Louis Malle. Ele roda pelas ruas da cidade em reconstrução como a testemunha incômoda de um passado que cai como reboco de casa velha. Nem por isso perde a elegância. E é esse contraste que confere uma significado a mais à crônica do cineasta francês sobre os domínios americanos. É com se Louis Malle estivesse dizendo: não ligue, eles - os americanos e seu pequeno/grande universo - são assim mesmo; estão sempre destruindo algo para construir outra coisa; sempre enterrando precocemente cadáveres que ainda desejavam viver um pouco mais, para permitir o nascimento precoce, ansioso e veloz de uma outra ordem que mantenha tudo em eterno movimento.
Talvez por isso, por essa pressa, até a contracultura, que prometia uma renovação mais legítima desse panorama, se corrompe antecipadamente, como mostra outro personagem do filme. Salva-se o lindo pescoço de Susan Sarandon, mas para quê? "Atlantic City", esse breve e pessimista conto sobre a impaciente alma americana, reserva apenas um piedoso final aberto para a fêmea que lhe colore o cinza. Tratamento igual ao destinado a Burt, seu monsenhor medíocre, que perde tudo mas mantém o orgulho interior.
Um olhar orgulhoso e algo pedante é o que lança "Umberto D." para a sarjeta iminente nas cenas do clássico neo-realista de Vittorio de Sica. Como Burt Lancaster em "Atlantic City", seu Umberto, coitado, já foi feliz um dia (Burt, aliás, parece nunca ter sido tanto assim) como funcionário público do Departamento do Trabalho ou algo similar. Agora, ele vive seu ocaso na pior época possível para um italiano turrão: o imediato pós-guerra, com o país em reconstrução, o custo de vida batendo na estratosfera, o comunismo clássico batendo à porta - e os neo-realista registrando tudo. Umberto D., esse velho sem passado e sem futuro, vive de uma aposentadoria insuficiente para lhe custear comida e teto. E vê-se obrigado a deixar, muito a contragosto, o quarto confortável onde repousa sua velhice. A única companhia é um cãozinho que se revelará um coadjuvante quase humano ao longo da filme.
Duas cenas você que não viu o filme pode estar certo que ficarão marcadas nas suas retinas tão fatigadas quando as do poeta Carlos. A primeira é a que mostra o reencontro sofrido entre seu Umberto e o cãozinho, no momento exato e derradeiro em que ele recupera o animal prestes a ser exterminado na saída da carrocinha. Os dois se abraçam e é como se dois seres humanos dividissem um sentimento comum, mas trata-se de um velho falido e de um cão ordinário. Comova-se à vontade, que velho e cão ratificam o quão humanamente tocante pode ser um filme neo-realista cinquenta e tantos anos depois do seu lançamento.
A outra cena é mais primorosa: mostra seu Umberto, muito reticente, experimentando o gesto de quem pede esmola - humilde mas ao mesmo tempo soberbo, derrotado mas também vigilante, tenso com a possibilidade de algum conhecido passar por aquela praça e o flagrar com a mão estendida. Mas a delicadeza da cena tem o condão de resolver tudo ao menos por um instante: basta ele virar calmamente a mão estendida para cima, girando a palma para baixo, e o pedido de ajuda vira um cumprimento no conhecido que, sim, aparece logo logo por ali. Antes, porém, a consumação: alguém passa, se comove e Umberto D., sem querer e querendo, recebe sua esmola.
Orgulho, de novo ele - mas agora em leitura mais legítima e estimulante. Quem o ostenta agora é Heitor, um brasileiro que defende com unhas e dentes tal condição. O "Villa-Lobos" de Zelito Viana começa trôpego, em cenas que aparentam uma produção precária (como na que retrata a homenagem ao compositor numa universidade norte-americana), insiste numa montagem tipo vai-e-vem que quebra o envolvimento do espectador com o filme e com o personagem, mas, uma hora depois de iniciada a sessão, afinal você já se acostumou ao biografado em questão.
Antônio Fagundes prejudica um pouco o negócio, porque insiste numa interpretação que retoca mais a celebridade do que o homem - reflexo, imagino, de um conceito da direção. A surpresa acaba vindo de Marcos Palmeira, ator que, como filho do diretor, mais parece a princípio uma escalação privilegiada (principalmente se a gente levar em conta que, na época do lançamento do filme no cinema, muito se falou sobre o cachê excessivo que o jovem ator recebeu, incentivos oficiais contabilizados). Pois a verdade é que, lá para as tantas, é Marcos Palmeira mesmo quem salva a história, ao investir numa representação mais alucinada do compositor do Trenzinho do Caipira quando jovem. Esse estilo atirado e os brados nacionalista que ele lança aqui e ali, qual um Poliquarpo Quaresma de celulóide, conferem ao filme uma feição que o faz ir além de uma história de vulto histórico, pecado que a direção de Zelito Viana comete repetidas vezes.
Descontados os momentos de mofo oficial, é um Brasil que se vê espelhado ali, na figura do nosso compositor mais célebre e proclamado, o criador que enxerga o país com olhos genoínos de quem de fato conhece sua gente - suas marcas mais profundas, sua música inaudível para quem, já naqueles tempos, tinha os ouvidos tapados pelo espírito pequeno que cultiva o alheio, o rico, o pronto, o (mundo) desenvolvido. E dá as costas para o que realmente somos. Há um momento em que Fagundes/Villa-Lobos discorre: "Não confundam o povo, a massa e o público. A massa é horizontal. O público é vertical. Já o povo é... diagonal". Espera aí, isso é um filme sobre a vida de um músico ou um documentário sobre mídia e política? Talvez seja as duas coisas - por sinal, o filme é honestíssimo ao mostrar o maestro sendo confrontado com o fato de "trabalhar para o Estado Novo" de Vargas. E é apenas em momentos em que é essas duas coisas e algo mais que ele se supera. Fato: as idéias de um homem, substrato para sua obra quando se trata de um artista, são sempre muito superiores à sua biofrafia.
E ainda há dois brindes: a presença acachapante de dois atores que, enquanto aparecem, fazem você esquecer sobre quem é mesmo o filme a que está assistindo. Um é José Wilker, como um músico-bebum-filósofo de bar da melhor espécie; outro é Ana Beatriz Nogueira como a primeira mulher de Villa Lobos, quase uma biografia à parte dentro daquela que o filme conta. Já Letícia Spiller, bela como sempre, histriônica como de costume, passa do ponto.
"Villa-Lobos, Uma vida de paixão", "Umberto D." e "Atlantic City": até que não posso reclamar do meu restinho de feriadão.
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