Em 2002, no momento ímpar em que Luís Inácio Lula da Silva ficou sabendo que acabara de ser eleito presidente da República, estava no apartamento de São Bernardo reunido com pouquíssimas e muito próximas pessoas. Havia a mulher e os filhos e alguns amigos. Um deles era Frei Betto; outro era Gilberto Carvalho. Naquele momento, o primeiro já era bastante conhecido por todos que acompanham a história política do país, a evolução da forças de esquerda dos anos 60 para cá, a parte do clero católico que se convencionou chamar de progressista. Já o segundo era praticamente um desconhecido - um amigo de Lula desde os tempos das greves dos anos 80 no ABC, ex-companheiro de trabalho e de militância sindical. O que importa saber aqui é que os dois estavam lá, naquele momento de emoção, aquele instante que tanto representou não só para Lula mas para todos que se identificaram politicamente com ele.
Hoje, mais de cinco anos depois, Lula reeleito, Lula no máximo da popularidade apesar de ter atravessado um período de profundo desgaste em meio a escândalos que fizeram a festa da oposição, temos outro quadro quando olhamos para a, digamos assim, intimidade política do exercício da Presidência segundo Luís Inácio Lula da Silva. Frei Betto retirou-se do governo, ao que nos foi dado entender enojado com o fato de o governo Lula ter se rendido às práticas políticas comuns no país - procedimentos que, acredita o religioso, Lula e seu governo tinham a obrigação de rejeitar. Já Gilberto, noticia a revista IstoÉ desta semana, está mais forte do que nunca. Exageros à parte, o fato é que Gilberto suportou o peso da política de todo dia - bem diferente mesmo da política idealizada pelo intelectual médio -, atravessou crises, ameaçou mas não saltou do barco (Lula não teria deixado, segundo IstoÉ), não se escandalizou publicamente e hoje comanda uma equipe de 50 pessoas nas entranhas burocráticas do Palácio do Planalto, como chefe de gabinete do presidente da República.
É por essas e outras que Frei Betto se tornou, para mim, uma das maiores decepções políticas dos últimos anos. Naturalmente a gente tem que respeitar a avaliação dele, que entendeu ser a realidade prática do poder algo pesado demais para carregar. Mas a gente também tem o direito de enxergar nisso uma fraqueza a partir do momento em que ele, fora do governo, continua exercendo seu direito de escrever nos jornais avaliações, diagnóticos e receitas para o país. A impressão que tenho - e isso é extensivo a outras pessoas - é de que Frei Beto aguarda o governo idealmente perfeito para "resolver" o Brasil. John Lennon dizia: "a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos para o futuro". É isso, enquanto o religioso espera, incomodado com os detalhes da operação política de todo dia, o Brasil vai se transformando, à revelia de sua sensibilidade exacerbada. O bom é que enquanto isso ele pode continuar diagnosticando nossas mazelas - e são tantas, à disposição da sobrevivência de tantos escribas - nas páginas dos jornais.
Na outra frente, quase anônima, de trabalho quase braçal (imagine o que é coordenador a agenda de um presidente popular como Lula), de trabalho braçal mesmo (imagine o que é administrar por dentro as mil e uma crises que atingiram o governo Lula com ou sem a colaboração dos famosos aloprados), Gilberto segue, dia após dia, como um alcóolico anônimo que nunca espera mais do que atravessar um novo dia sóbrio, dando a contribuição para o país melhorar - se não estruturalmente, como ademais todos queremos, e não só os intelectuais médios, mas ao menos nas estratégias de distribuição de renda que forem possíveis, factíveis, executáveis.
Volto àquele momento crucial do primeiro parágrafo. Está tudo no filme que João Moreira Salles fez, "Entreatos", e que você pode ver em DVD. Frei Betto fez uma rápida e informal celebração com a família Lula para celebrar a certeza da histórica eleição. Uma coisa terna, um momento de congregação íntima para um sentimento muito maior que naquele momento tomava conta de um país inteiro. Já Gilberto fez algo muito prosaico, mas profundamente emocionante para quem assiste ao documentário: a pretexto de dar um abraço no amigo Lula, o que ele de fato fez foi cair nos braços do presidente eleito e chorar como um menino. Um homem feito, vivido, desabou em lágrimas no que parecia uma mistura de emoção com alívio - um suspiro amigo de quem, assim como o candidato, batalhou tanto até chegar àquele momento.
Hoje, pelo que vemos, Betto está de um lado - embora não necessariamente em "oposição" - e Gilberto em outro. O curioso é que o apóstolo da fé que celebrou a vitória com uma singela reza caseira acabou se revelando um descrente nas ações possíveis, optando pela deserção. E o homem comum, ex-metalúrgico e ex-sindicalista, é hoje quem comprova para os espectadores dessa história o valor da verdadeira fé - aquela que não se intimida com as tais montanhas, mas vai subindo aos pouquinhos, caindo aqui e ali, sem perícia mas com sabedoria e persistência. Hoje, Gilberto me parece mais sábio do que o religioso Betto. O valor daquele abraço chorado superou o da liturgia discreta.
Hoje, mais de cinco anos depois, Lula reeleito, Lula no máximo da popularidade apesar de ter atravessado um período de profundo desgaste em meio a escândalos que fizeram a festa da oposição, temos outro quadro quando olhamos para a, digamos assim, intimidade política do exercício da Presidência segundo Luís Inácio Lula da Silva. Frei Betto retirou-se do governo, ao que nos foi dado entender enojado com o fato de o governo Lula ter se rendido às práticas políticas comuns no país - procedimentos que, acredita o religioso, Lula e seu governo tinham a obrigação de rejeitar. Já Gilberto, noticia a revista IstoÉ desta semana, está mais forte do que nunca. Exageros à parte, o fato é que Gilberto suportou o peso da política de todo dia - bem diferente mesmo da política idealizada pelo intelectual médio -, atravessou crises, ameaçou mas não saltou do barco (Lula não teria deixado, segundo IstoÉ), não se escandalizou publicamente e hoje comanda uma equipe de 50 pessoas nas entranhas burocráticas do Palácio do Planalto, como chefe de gabinete do presidente da República.
É por essas e outras que Frei Betto se tornou, para mim, uma das maiores decepções políticas dos últimos anos. Naturalmente a gente tem que respeitar a avaliação dele, que entendeu ser a realidade prática do poder algo pesado demais para carregar. Mas a gente também tem o direito de enxergar nisso uma fraqueza a partir do momento em que ele, fora do governo, continua exercendo seu direito de escrever nos jornais avaliações, diagnóticos e receitas para o país. A impressão que tenho - e isso é extensivo a outras pessoas - é de que Frei Beto aguarda o governo idealmente perfeito para "resolver" o Brasil. John Lennon dizia: "a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos para o futuro". É isso, enquanto o religioso espera, incomodado com os detalhes da operação política de todo dia, o Brasil vai se transformando, à revelia de sua sensibilidade exacerbada. O bom é que enquanto isso ele pode continuar diagnosticando nossas mazelas - e são tantas, à disposição da sobrevivência de tantos escribas - nas páginas dos jornais.
Na outra frente, quase anônima, de trabalho quase braçal (imagine o que é coordenador a agenda de um presidente popular como Lula), de trabalho braçal mesmo (imagine o que é administrar por dentro as mil e uma crises que atingiram o governo Lula com ou sem a colaboração dos famosos aloprados), Gilberto segue, dia após dia, como um alcóolico anônimo que nunca espera mais do que atravessar um novo dia sóbrio, dando a contribuição para o país melhorar - se não estruturalmente, como ademais todos queremos, e não só os intelectuais médios, mas ao menos nas estratégias de distribuição de renda que forem possíveis, factíveis, executáveis.
Volto àquele momento crucial do primeiro parágrafo. Está tudo no filme que João Moreira Salles fez, "Entreatos", e que você pode ver em DVD. Frei Betto fez uma rápida e informal celebração com a família Lula para celebrar a certeza da histórica eleição. Uma coisa terna, um momento de congregação íntima para um sentimento muito maior que naquele momento tomava conta de um país inteiro. Já Gilberto fez algo muito prosaico, mas profundamente emocionante para quem assiste ao documentário: a pretexto de dar um abraço no amigo Lula, o que ele de fato fez foi cair nos braços do presidente eleito e chorar como um menino. Um homem feito, vivido, desabou em lágrimas no que parecia uma mistura de emoção com alívio - um suspiro amigo de quem, assim como o candidato, batalhou tanto até chegar àquele momento.
Hoje, pelo que vemos, Betto está de um lado - embora não necessariamente em "oposição" - e Gilberto em outro. O curioso é que o apóstolo da fé que celebrou a vitória com uma singela reza caseira acabou se revelando um descrente nas ações possíveis, optando pela deserção. E o homem comum, ex-metalúrgico e ex-sindicalista, é hoje quem comprova para os espectadores dessa história o valor da verdadeira fé - aquela que não se intimida com as tais montanhas, mas vai subindo aos pouquinhos, caindo aqui e ali, sem perícia mas com sabedoria e persistência. Hoje, Gilberto me parece mais sábio do que o religioso Betto. O valor daquele abraço chorado superou o da liturgia discreta.
2 comentários:
Tião, belo texto. Você resumiu muito bem o que significa fé. Ou melhor, traduziu, como poucos, o que é a fé no processo político.
lindo, tião. uma aula de política.
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