sábado, 24 de maio de 2008
A face de Brasília
Luiz Carlos Vasconcelos é uma presença austera, um fantasma especulativo que caminha pelas quadras de Brasília, o olhar alinhado com a linha do horizonte, a intuição ligada em potência máxima, o andar cadenciado de quem no fundo flutua. Luiz Carlos Vasconcelos é o vaqueiro voador do romance de cordel na brilhante adaptação para o cinema feita por Manfredo Caldas. Luiz-o ator/Vaqueiro-o personagem podem estar na Asa Norte, no Núcleo Bandeirantes, chegando à cidade no aeroporto e sendo recebido pelo diretor do filme, ou então vaquejando naqueles descampados por trás da praça dos Três Poderes, em cenas pungentes que se projetam sobre os vidros modernosos dos novíssimos prédios do Judiciário na capital do país. Onipresente, esse vaqueiro ancestral, esse vulto materializado no corpo andante de Luiz Carlos Vasconcelos, na elegância transcendente de um caminhar que nos lembra, a contragosto, a anti-saga que gerou esta cidade.
Antes de tudo, "O Romance do Vaqueiro Voador" é meio inclassificável, como gênero. Como expressão cinematográfica de uma cidade, é um pequeno marco. Sem ser pretensioso, o filme leva para a tela o romance de cordel que conta a história de um entre os inúmeros peões nordestinos que morreram ao contruir Brasília. Nem morte matada nem morte morrida - morte "voada", ao cair do alto da estrutura metálica de um dos prédios em construção na futura capital. O poeta popular João Bosco Bezerra, autor do texto original, fundiu em um único personagem a tragédia comum de uma leva de candangos que trabalhou em ritmo exasperante e exaustivo para concluir no prazo as obras da nova capital. Nisso, parte da leva se foi, morta. Eram os acidentes, comuníssimos segundo os depoimentos que se vê no filme. Uma das testemunhas ouvidas lá conta que, somente no "28" eram quatro por dia. Quatro por dia, em média. Sabe o que era o "28"? Era o apelido que os peões davam ao esqueleto do que hoje é o Anexo 1 da Câmara dos Deputados. Justamente: uma das pernas daquele H situado entre as famosas bacias de Niemeyer. Quando lembro que de vez em quando preciso subir, digamos, ao décimo sétimo andar daquele prédio para pegar um documento funcional uo qualquer coisa assim, sinto o arrepio. Acontece que, na construção, esse era o prédio mais temido. O candango queria fazer qualquer coisa, menos trabalhar no "28" que, imagino, tinha esse apelido devido ao número de andares (vou conferir segunda-feira).
É de histórias assim que se compõe "O Romance do Vaqueiro Voador", um filme que amplifica uma verdade submersa que já havia sido explorada antes pelo igualmente soberbo "Conterrâneo Velho de Guerra", um clássico (embora injustamente desconhecido) de Wladimir de Carvalho. Só que "Conterrâneo..." é um documentário no sentido tradicional do formato. E é aqui que "Romance do Vaqueiro Voador" dá seu salto: Manfredo Caldas mandou para o espaço a rigidez das fórmulas e fez de seu filme um híbrido de poesia, música, documento e memória coletiva. Há instantes em que tudo isso se funde, com a ilustrativa imagem do rosto de Vasconcelos girando na tela sobre o céu mais azul de Brasília. É a tradução visual mais perfeita de tudo isso - dessa cidade híbrida e de suas contradições irrecuperáveis. Não há acerto de contas, embora o filme passe por episódios dramáticos como o massacre de operários no galpão de refeições da empreiteira Pacheco Fernandes. A denúncia surge como um elemento a mais no cenário de contradições que deu origem à Brasília de hoje.
Aliás, é preciso dizer, nem que seja a título de curiosidade, nenhum filme recente - ou dos mais antigos - retrata Brasília com tal fidelidade (a fidelidade possível, claro) quanto este "Romance". Quem não conhece a cidade e quer travar algum contato com ela via cinema deve assistí-lo. Em outras postagens, eu reclamava da falta de um filme que realmente espelhasse minimamente a Brasília misturada, caótica, segregada e ao mesmo tempo integrada de hoje em dia. Pronto: taí, é o "Romance". Manfredo Caldas conseguiu atingir esse difícil objetivo. Não é parcial como o niilismo desabalado de "A Concepção" (José Eduardo Belmonte) nem ingênuo como o oitocentista "O Sonho não acabou" (Sérgio Rezene). Tampouco forçadamente noir como "Brasília 18%" (Nelson Pereira dos Santos).
O que faltava, nos ensina este "Romance", era ignorar convenções, investir numa montagem que recupera o fértil choque de idéias, sons e imagens, apelar para a tão desvalorizada poesia, coitada, e encontrar aquele elemento crucial de que o cinema nunca vai abrir mão quando quer expressar um sentimento, uma angústica, uma felicidade, uma época, um país ou uma cidade: um rosto. E isso encerra tudo: Brasília, com todas as suas mil faces, tem a cara de Luiz Carlos Vasconcelos. Um rosto que funde tudo, confundindo e explicando ao mesmo tempo, dando traços profundamente humanos à arquitetura antropológica de uma cidade e sua gente.
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Um comentário:
Sebastião Vicente, tudo bem? Estou na produção do livro de críticas do filme O Romance do Vaqueiro Voador e gostaríamos de colocar seu comentário acima no nosso livro. Este foi um pedido do próprio Manfredo Caldas. O que você acha? Me responda pelo meu e-mail norlan.cine@gmail.com
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