quarta-feira, 7 de maio de 2008

O novo faroeste na tevê


Alguma coisa em "Deadwood" me lembra o filme "Sangue Negro". Alguma coisa, não. Muitas delas. Estão lá a mesma sordidez, as mesmas ranhuras dilacerando almas torpes, as mesmas sombras revestindo ambientes e pessoas, a mesma violência exacerbada que tanto causa espanto quanto fascínio e repulsa. Tudo ao mesmo tempo. Mas, atenção para o detalhe, estamos falando de um seriado de televisão. No cinema, toda crueza é perdoável. Toda projeção na tela de uma situação que existe de fato fora dela é digerível. Vide o espectro sangüinário de um filme com "Amores Brutos". Vide a aspereza visual e sensitiva do já citado "Sangue Negro". Vide até a brutalidade editorialmente induzida de "Tropa de Elite". Mas quando um seriado expõe na televisão tamanha carga de realismo, é sinal de que há algo novo no ar.


"Deadwood" é um seriado do tipo "Lost" - esses que contam uma história que vai se complicando ao longo dos capítulos, como uma novela brasileira, mas que também podem ser apreciados episódio por episódio, cada um fazendo sentido em si mesmo. Conta a história de uma cidade em formação em terras indígenas, a Deadwood do título, sustentada por garimpos e movimentada pelos mais imperfeitos tipos que já se viu na telinha caseira. O dono do principal saloom parece ser o suprasumo das mazelas do ser humano - mas essa impressão, apesar de rigorosamente alimentada a cada episódio, logo se revela uma meia verdade, já que as pessoas com quem ele convive, o espectador vai descobrir, não ficam atrás.


Na primeira cena, o protótipo de herói - a série precisa de um herói, sim, mas à altura da devassa que promove - é um xerife diante de uma turba sedenda de sangue. Entre a turba e o xerife, há um infeliz, um trapo humano, condenado. A turba quer matá-lo com as próprias mãos. O xerife-herói banca o correto: bate o pé enforca pessoalmente o condenado antes que a turba o faça. Ali mesmo, em frente à cadeia, improvisando corda e cadafalso. Se o herói é assim, imagine os antagonistas. Em resumo, o que o seriado mostra é uma visão crua, imperdoável, cínica e explicitamente violenta da conquista do oeste americano - tema que os velhos faroestes do cinema cansaram de tratar de forma romantizada. Hoje, é possível fazer isso. E, cena após cena, episódio sobre episódio, o que se vê é um apanhado ao contrário dos mitos fundadores da expansão americana. Aquela história que todos conhecemos: se os mitos foram mentiras necessárias para a formação de uma nação, mais cedo ou mais tarde alguém vai mostrar a verdade que eles encobriram. John Ford já havia dado pistas com "Rastros de Ódio", mas com uma suavidade que parece pó de arroz diante da poeira negra que essa série levanta.


Estou assistindo à primeira temporada. Acabei de ver os episódios do terceiro DVD, falta apenas um, mas já sei que não posso me empolgar demais. O aviso serve pra você, caso se interesse também em entrar no perigosíssimo território de Deadwood: sites na internet informam que o seriado ficou inacabado. Fãs reagiram furiosamente, bradando a qualidade do seriado com a mesmo fúria com que reclamam de seu caráter inconcluso. A título de conclusão, o que se pode dizer é que a tal cidade existe mesmo até hoje e fica no estado de Dakota do Sul. Mas isso eu também li na internet, de maneira que não sei se é verdade ou um novo mito contemporâneo que o antimitológico seriado produz, ainda que involuntariamente.

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