Outro dia, na van que leva a gente do edifício principal da Câmara para o estacionamento dos funcionários, alguém comentou que, quando se boceja, está-se na verdade refrescando o cérebro. Se for assim, meus miolos devem ser bem arejados, como um oitão de casa sertaneja às duas da tarde. Mas a verdade é que ultimamente tenho recorrido a outro artifício para manter a cuca gelada e refrescante: ando lendo, como quem toma um sorvete napolitano, "Conexão Manhattan - Crônicas da Big Apple", seleta coloquial de escritos de Lucas Mendes, mineiro batuta que se americanizou com todo o direito e que todo mundo conhece, se não dos tempos de correspondente da Globo nos estaites, ao menos - e o que é bem melhor - do melhor dos melhores tempos do programa de tv "Manhattan Connection", noites de domingo, GNT, Caio Blinder, Paulo Francis, já foi melhor, é verdade, vocês sabem.
As crônicas, reportagens e outras amenidades publicadas na imprensa em geral (boa parte deles na revista "Imprensa", outra que já teve tempos bem melhores) funciona com uma bela sobremesa caso você venha de leituras mais sombrias. É uma ótima pedida para intercalar entre um "Torquatália" e um "Moby Dick", pra ficar em títulos citados ainda recentemente neste Sopão. É uma delícia frugal, por exemplo, fuçar os bastidores do Manhattan Connection, como a história do incrível dia em que o engenheiro responsável gravou todo o áudio do programa - e nada, nadinha mesmo, do vídeo, e os rapazes tiveram que, imediatamente, putos como só eles conseguem ficar, regravar tudo. Lucas garante que ficou muito melhor. Também estão lá várias histórias de assistentes de equipes de televisão que acompanharam Lucas Mendes em reportagens mundo afora, no Líbano ou nos conflitos que nos anos 80 marcaram a América Central. Há um em particular que vai arrancar de você, leitor, aquelas risadas ridículas que a gente costuma dar em lugares públicos, quando está sozinho com um livro, e um livro que nos faz gargalhar indiferentes a quem ou o quê esteja em volta.
Quem trabalha ou trabalhou em redações, quem já foi repórter de passar horas nas ruas trabalhando com o auxílio de assistentes de câmera ou motoristas sabe como eles são divertidos - muitas vezes até involuntariamente. Lendo o livro de Lucas Mendes, era impossível que eu não lembrasse de dois deles: dois motoristas, ali por 1988-90, na Tribuna do Norte. Até hoje, se a gente juntar os nomes dos dois, soa cômico, como um título de dupla do cinema ou da música sertaneja: Fiel e Fabrício.
Fiel era gordo, falastrão, meio nervoso, cabeção, dado às risadas, tão expansivo quando sua barriga de morador do Alecrim acostumado ao mundo dos morre-em-pé. Trabalhava à tarde. Era aos cuidados dele que repórteres como eu, Bernadete Cavalcanti, Silvio Andrade, José Zilmar e tantos mais que eu evidentemente vou esquecer o nome batíamos Natal inteira, de Soledade II à Vila de Ponta Negra, "cumprindo pautas" como se dizia. Tenho até hoje uma foto onde apareço, migricelo como o passado, ao lado de Fiel e do fotógrafo Emerson do Amaral, sob o sol do meio-dia, numas pedreiras em Caicó, onde procurávamos histórias de barbearias improvisadas e outras manifestações dos bairros populares da cidade. Fiel participava, dava pitacos, às vezes ficava emburrado por qualquer besteira, levava os problemas de casa para a kombi onde trabalhava - enfim, compunha, com todos os ingredientes, o exemplo perfeito do assistente em equipe de jornalismo. Parecia um personagem - de tão típico, só podia ser inventado. Mas era pura realidade.
A história mais marcante de que me lembro com Fiel deu-se numa noite, num daqueles hotéis chiques da Via Costeira - na época, mais chique ainda, porque recém inaugurado. Pensando bem, não foi no Imirá - o hotel que me veio à memória, mas poderia ter sido, uma vez que, não sei porque, volta e meia nós da Tribuna da época lá estávamos, em algum lançamento de alguma coisa, ou para entrevistar alguma celebridade de passagem. Mas a história se deu, de fato, ali perto, no Centro de Convenções de Ponta Negra. Era um desses congressos gigantescos que reúnem a nata do empresariado de determinado setor, no caso, da alimentação. Quem se congratulava era o ramo dos presuntos, frios, fatiados, as Sadias da vida. E havia, por isso mesmo, uma bela mesa posta para os participantes, convidados e a tal da imprensa. E quem fazia parte da imprensa? O nosso motorista Fiel, claro. Ouso dizer que nunca na história desse país a imprensa se fez representar tão fortemente em evento algum. Fiel, motorista primeiro e único, vendo todos se servirem na mesona de frios, postou sua barriga protuberante à frente do corpo, deu dois passos decididos e, olhar decidido e expressão soberana, pôs-se a recolher com as mãos mesmo camadas e mais camadas de presunto fatiado, torres de queijo fininho empilhado, e fartos punhados de salgados para acompanhar. Tudo isso para comer, há de se perguntar o leitor. Não, meu caro, era "pra viagem". Ia tudo para os bolsos das calças folgadas do nosso bravo motorista. Sem a menor cerimônia, com o mandato que o reinado do Alecrim lhe deu para que agisse soberano onde se julgasse convidado. Nenhum de nós outros, repórteres da Tribuna ou do Diário (neste tempo, Natal era uma pobre cidade bipartidária em termos de jornais), fez qualquer repreensão. Assistimos a tudo aquilo com o ar de riso que torna mais interessante certas ocasiões muito chatas.
A história do saque dos presuntos levou muito espaço e sobrou pouco para falar sobre Fabrício, o Fiel do turno da noite. Mas é coerente que seja assim, já que Fabrício era em tudo o oposto de Fiel: calado, taciturno, se não magro, também não gordo, na-dele, embora, muito de vez em quando, soltasse um comentário que, justo por falar pouco, chamava a atenção dos passageiros. Que éramos nós, plantonistas da noite (havia isso e, logo no meu primeiro plantão noturno pegou fogo a sapataria Manchete Calçados, naquele bequinho que é a rua Cel. Cascudo, na cidade) ou repórteres, editores e diagramadores não-motorizados da era pré-aquecimento global, gente que trabalhava além das nove da noite e por isso tinha direito a transporte para ir para casa.
Você pode chamar de transporte, mas na verdade era uma farra. No bonde havia gente como os repórteres supracitados e pessoas que depois teriam papel de destaque na cidade, como nosso amigo Rubinho, Rubens Lemos Filho, que por ali começou o namoro com Isabel, sim, senhor. Carlão, Sônia (não a companheira do nosso amigo, mas a diagramadora), um bando de gente boa que eu evidente vou cometer o pecado de esquecer os nomes. E, no comando do volante, o igualmente bravo Fabrício, olho vivo, boca fechada e espírito aberto. Aberto ao ponto de desviar da rota principal - o endereço de cada um de nós - para aquela parada estratégia no Bar do Negão, domínios do Jiqui, onde se bebia o de sempre e se reforçava o estômago vazio com um caldo a cavalo de recuperar um exército. Fabrício, ao que me lembre, não bebia - ficava só na mutuca, observando o frevo daquela gente divertida, alegre e jovem.
É muito comum que, à noite, na van que leva o pessoal da Câmara para um dos estacionamentos da casa, eu lembre daqueles tempos da Tribuna. É quase o mesmo clima - mas tudo se dilui bem rapidinho, como o tempo, esse passageiro apressado.
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