Enquanto aqui em volta o mundo fica com uma cara cada vez mais careta, eu encontro refúgio e respiração nas experiências da contracultura. Acabei de ler, nestas férias, quase simultaneamente, dois livros que trazem o melhor e o pior daqueles anos, 69-73, desbunde com tropicalismo, política das armas x política do corpo, festivais x iê-iê-iê, abertura convivendo com conservadorismo, Itapoã e Londres, teatro e cinema novo, ares clássicos que deram em tudo e deram em nada - é uma questão de ponto de vista e de ver tudo sem se grudar às verdades estabelecidas (que, hoje em dia, até o célebre 1968 tem das suas, o ano que não deveria terminar e por isso mesmo em muitas situações virou mercadoria).
Os livros, quem acompanha o Sopão já deve ter advinhado, são:
1) "Torquatália", organização de Paulo Roberto Pires, editora Rocco, primeiro volume com reunião de colunas escritas para jornais como Correio da Manhã e Última hora pelo letrista, poeta e atormentado piauiense; 2) "Longe daqui aqui mesmo", segundo livrinho de memórias existencial-desbundistas do homem de teatro Antônio Bivar (foto), autor de textos celebrizados naqueles tempos, como "Cordélia Brasil" e a outra peça que leva o mesmo título do livro. A edição é daquela coleção de bolso da L&PM, jóia barata e rara para quem gosta de fuçar livrarias e levar ao máximo a máxima desse mesmo Bivar nas ditas memórias - o melhor aproveitamento com o mínimo de gastos.
Eis, pra começar, uma grande distinção: é disso que tratam as memórias de Bivar, livrinho que vem exatamente na seqüência do anterior "Verdes vales do fim do mundo", em que ele narra sua trip por oropa, frança e bahia (não resisti a usar a expressão, mas fica só na oropa mesmo, em particular na Inglaterra, entre Londres e antigas cidades medievais). Bivar e sua troupe mostram o quando se pode viver a vida gastando o mínimo, aproveitando a solidariedade que só aqueles tempos produziram daquela maneira, mistificando até a fome - e principalmente a fome. Nesses tempos em que a gente mal consegue resistir ao consumismo que nos arrasta, ler as memórias de Bivar contando sobre suas peregrinações entre hippies, atores e atrizes, brasileiros exilados além-mar, drogas de um outro tempo, cores de um outro céu numa era politicamente muito mais implacável, é injetar atmosfera nova nesses nosso novo tempo que, embora politicamente livre de amarras, acaba se atrelando a valores vencidos. Curiosa contradição: na era da repressão, aqueles hippies tão intensamente desapegados vivendo a experiência do momento; hoje, na era da pós-liberação, toda essa gente tão fortemente mesquinha contando o muito que tem e vivendo, de fato, tão pouco.
Mas não era dessa distinção que queria falar: era, antes, do contraste representado pela experiência de Bivar e pela jornada de Torquato. Ler os dois livros ao mesmo tempo deixa bem claro os claros e escuros da contracultura. Enquanto Bivar sempre se posicionou, apesar de todas as barras, em lugares sob o sol de sua era, Torquato sugere nos seus escritos uma atração irresistível pelo lado mais obscuro, a porção mais sombria daquele mesmo momento. Bivar é bate-papo entre amigos sintonizados na mesa da cozinha, Torquato é monólogo trancado no quarto, tão expressivo quanto hermético. O resultado nós sabemos hoje: Bivar está aí, com seus cabelos brancos, sua cara de hippie vovôzão dando entrevistas em que reavalia o panorama com a calma zen que já estava presente tanto em "Verdes vales" quanto em "Longe daqui". E Torquato se foi, não suportou o peso do movimento, sucumbiu ao alcoolismo e às drogas - leio na linha do tempo ao final do livro que ele usou LSD por trinta dias seguidos para relatar a experiência em cadernos que acabaram se perdendo.
Aí estão: manhã solar e noite escura, os dois lados da contracultura que, sabemos, nos deu régua e compasso - nós, essa geração privilegiada que viveu infância e juventude nos anos 70 e 80 - para tocar a vida em outras formatações. Devemos a Bivar e a Torquato, igualmente. Nossos padroeiros profanos, bons profetas do mau caminho. Senhores da desobediência, catequistas da renovação. Se o primeiro vive e resplandece a energia da época, o segundo, com seu suicídio nem um pouco simbólico, também cumpre sua função.
Hélio Oiticica causou a maior confusão com seu estantarde, "Seja marginal seja herói". Bivar e Torquato, seus livros, em uníssono, parecem dizer, tantos e tantos anos depois, "viva a contracultura e fique esperto".
Um comentário:
Muito boa, Tião, a lembrança de Bivar e do torturado Torquato.Fiquei interessado no livro do primeiro e vou tentar encontrá-lo. Um abraço.
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