sexta-feira, 6 de junho de 2008

Os ricos detalhes da biografia



Tenho um senhor motivo para ter sumido daqui nos últimos dias. Só não sei de terá a aprovação de vocês. Mas garanto que, pra mim, tem sido um motivo e tanto. É que estou lendo a biografia de Roberto Carlos, aquela do rei "Em detalhes", o livro que foi recolhido das livrarias mas não a tempo de deixar de ser comprado por um bando de gente, que agora trata de passar para a frente, como fez meu amigo Silvério Rios, me emprestando um dos exemplares que comprou (ele gostou tanto que adquiriu vários e presentou os amigos). Para quem já leu "Eu não sou cachorro, não", é mais um petardo genial do neo-historiador Paulo César de Araújo, esse brasileiro comum originário de Vitória da Conquista (BA), conhecedor do Brasil mais profundo - aquele que inclui as metrópoles, mas também habita territórios distantes da costa e das capitais. A leitura de "Roberto Carlos em detalhes" - e a briga judicial que o artista declarou ao seu biógrafo fica bem apequenada diante do belo trabalho de Paulo César - consolida posições que o autor já havia exposto com coragem e tarimba no livro anterior.

Se em "Eu não sou cachorro...", Paulo César mostra como a história da música brasileira tem sido contada com um ranço de exclusão, ao negar a existência e o sucesso de músicos, cantores e compositores desaprovados pelo padrão de bom gosto da classe média urbana e intelectualizada dos litorais, em "RC em detalhes" ele aplica sua tese à trajetória do maior artista popular do Brasil. E vai comprovando, de capítulo em capítulo, de acontecimento em acontecimento da grande escalada que levou à consagração de Roberto, cada um dos pontos anteriormente levantados. A esnobação do iê-iê-iê, o descarte da música de Roberto e Erasmo como produto de jovens ignorantes da periferia carioca, a insistência em apropriar-se da bossa nova e definir a partir dela - e somente a partir dela - o que tem ou não qualidade na música que o Brasil ouve ou deixa de ouvir. Há um momento do livro em que Paulo César faz uma brilhante distinção: entre bossa nova em letras minúsculas e Bossa Nova, assim, com iniciais em caixa alta. Ele observa que a segunda é uma apropriação da primeira, inventada não por Carlos Lira ou Menescal, mas por João Gilberto a partir da experiência dele também com os ritmos do interior do Brasil, o que escapava aos jovens dos apartamentos de Ipanema que até hoje dão entrevistas autoproclamando-se detentores do gênero. Paulo César diz que existiu a Bossa Nova de maiúsculas, restrita a um grupo pelo menos enquanto esse mesmo grupo conseguiu manter sua música fora do alcance de "qualquer um"; e existiu a bossa nova, o gênero, em letras comuns, sem estar preso às paredes excludentes de um movimento musical mantido por iniciados.

Disso tudo você já pode ir concluindo que "Roberto Carlos em detalhes" vai muito além de uma historinha de como ele se tornou o rei. O crescimento de Roberto como artista, a maneira como organizou a carreira, os obstáculos que teve de pacientemente enfrentar - e não pense que foram poucos -, os detalhes íntimos da vida do astro que contribuíram para dar à sua música o formato consagrado que ela tem, tudo isso é uma fascinante matéria de leitura no livro. Mas também contribui para enriquecer o livro o painel que Paulo César constrói em torno desse caso de sucesso brasileiro e mundial, a análise da vida e da obra de Roberto como pretexto para erigir uma nova historiografia da música brasileira, assim como a investigação que faz sobre o caráter pronfundamente brasileiro do cantor e compositor - é impressionante como também o artista guarda essas características, como se sua pessoa resultasse de um corte tranversal na carne desse nosso povo tão variado e ao mesmo tempo tão indivisível. O que explica, também, outra profundidade - a do flagrante processo de identificação que liga Paulo César ao seu objeto de estudo, melhor dizendo, ao seu ídolo, Roberto Carlos.

Ainda faltam uns quatro capítulos, mas já sei que o livro não poderá contar, por impossibilidade legal ou técnica, a história à parte de como sua publicação irritou Roberto Carlos e resvalou para um acordo judicial que retirou o título das livrarias. Seria um belo capítulo final para o futuro (quando, quiçá a venda do livro sendo liberada, Paulo César porventura encerre sua história com um posfácio ou capítulo adicional somente para narrar a briga judicial), não fosse, diante da leitura do livro em si, esse que não pode mais ser vendido, um adendo pequeno, mesquinho, quase ingênuo por parte de um artista que teve de remover de seu caminho montanhas bem mais significativas. Mas, de certa maneira, até essa interdição contribui para a humanização de Roberto Carlos, processo contra o qual o próprio artista, inutilmente, luta. Ele devia era agradecer por um estudo intelectualmente tão honesto sobra a sua presença definitiva no coração de gerações de brasileiros.

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