Por que nos incomodamos ao assistir a "Baixio das bestas", filme do pernambucano Cláudio Assis? Porque o diretor, investido do desejo consciente de inscrever seu nome no livro do (novo) cinema brasileiro, pega pesado mesmo. Ele já pegava pesado em "Amarelo manga", seu filme anterior, aquele em que esquadrinhava as misérias urbanas de um Recife imenso, caótico e febril.
Aquele em que, lançando mão de recursos arriscados na busca por uma expressividade extrema, Cláudio Assis fazia Leona Cavalli afrontar um bossal Jonas Bloch – e um acomodado espectador classe média – com um tremendo close de sua xoxota ruiva. Aquele em que carros xispavam pelos asfalto ribeirinho entre as mil pontes da Mauricéia nordestina, redesenhando a representação do Nordeste naquele mesmo (novo) cinema brasileiro.
Para além dos incômodos, os dois filmes – "Amarelo manga" e "Baixio das bestas"- são ótimos. A questão aqui é outra. No "Baixio das bestas", a lente de Claudio Assis volta suas pupilas sedentas para a zona da mata pernambucana, avançando rumo ao interior da terra e às entranhas dos homens. Por isso mesmo, justificativa é o que não lhe falta quando enquadra porretes e genitais, curras e maracatus, boyzinhos remediados e putas entediadas. Toda a crueza das cenas de violência e sexo – dois elementos que no filme aparecem quase sempre juntos, gêmeos, xipófagos – são plenamente justificáveis.
Então, se é assim, por que nos incomodamos ao assistir ao filme, essa "Laranja mecânica" brejeira e miserável? Será porque fica a impressão do culto ao choque? Essa desconfiança me lembra Nelson Rodrigues, que também chocou na sua época, e cuja abordagem das mazelas humanas parece afinada com o discurso do cineasta pernambucano. Vejamos: Nelson Rodrigues punha lentes de aumento sobre matérias que ninguém queria enxergar. E, como resultado, jogava no palco acintes humanos, individuais, familiares, grupais agigantados quando, na verdade, o objetivo do texto era a moralidade. Explicitava desejos inconfessos em frases que pareciam orações ao contrário, contrições inevitáveis que devolviam alguma santidade a pecadores contumazes.
Não é mais ou menos isso o que faz Cláudio Assis em "Baixio das bestas"? Coletar a miséria humana num momento de decadência, encarar a degradação mais abjeta, encher a tela com a mais espúria violência e, assim procedendo, denunciar o marco zero da (in)consciência?
É, mas ainda assim a pergunta permanece: por que diabos nos incomodamos ao assistir ao filme? Filme que, destaque-se enquanto é tempo, é captado admiravelmente e em certos momentos nos exibe quadros de rara beleza no cinema brasileiro atual, por bem compostos, pacientes, cadentes em sua lentidão, como aquele plano em que a garota vilipendiada espera o transporte na estrada de terra arenosa e, na medida do possível, lírica. Ou ainda quando penetra no colorido triste dos maracatus, um fenômeno social que nunca mais, depois de assistir a esse filme, o espectador verá com os mesmos olhos nos carnavais da vida. Ou quando contempla a boca escancarada do caboclo sorvendo a seiva da cana retorcida no esforço flagrante de um gesto ancestral. O filme está cheio dessas pequenas epifanias, para usar a expressão criada por João Moreira Salles.
Então, por que nos incomodamos? Talvez porque estejamos, hoje em dia, fartos do choque. Na medida em que opta pela crueza extrema, por essa câmera quase física, quase tátil, o filme desqualifica a mera sugestão. É como se afirmasse: a sugestão é pouco, não é digna de um cinema que se quer visceral, contundente – revolucionário? E nessa batida, o (novo) cinema brasileiro está aos poucos se enchendo de realizadores que tentam fazer frente ao cineminha Globo Filmes do tipo Daniel Filho usando uma técnica do tipo "o realismo além do realismo". Nesse ponto, "Baixio das bestas" é primo de "Tropa de elite" – e quem lê esse blogue já entendeu que gostei tanto do primeiro quanto desgostei do segundo.
Por que nos incomodamos? No final das contas, o que me incomodou – não sei vocês, não sei dos outros – talvez seja a pretensão por trás da contundência. "Baixio das bestas" é tão bestial que me deixou com saudades da velha e boa sutileza.
Um comentário:
Tião,
Não vi esse filme, como também "Amarelo Manga". Mas o seu texto está bom. Mas vi, recentemente em DVD, "Cinema, Aspirinas e Urubus", que me agradou um bocado. Abraços.
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