quinta-feira, 4 de março de 2010

A arte de recuar


Nunca antes na história desta cidade um prefeito voltou tanto atrás. E não se fala aqui de retrocesso político no sentido imediato da expressão. É voltar atrás mesmo, literalmente. Anunciar para logo em seguida suspender. Defender uma proposta para no momento seguinte dizer que não era bem assim. Decretar para, ato contínuo, vetar a própria determinação.

Esta, sim, parece ser a verdadeira beleza da política: a capacidade que uma população tem de, descontente com uma proposta anunciada pelo seu representante legal, dizer não – e, de tanto fazer barulho, ser até ouvida. Mas de nada adianta espernear se do outro lado não estiver alguém de tímpanos sensíveis. E não estou falando de questões meramente auditivas, mas de algo bem maior: daquilo que, na falta de expressão melhor, chamo de "a arte de recuar" – um dom dificílimo de se ter e de se praticar.

Quer ver? Pergunte a você mesmo quantas vezes recuou de uma idéia, uma frase, uma atitude nos últimos meses. É de contar nos dedos, e uma mão dá e sobra. Agora aplique isso à política e à administração de uma cidade como Natal. Sentiu o drama? Então cumprimente, nem que seja telepaticamente, a prefeita que a cidade – não esqueça – bem ou mal elegeu em turno único na última disputa municipal. Pois bem: eleita e instalada na cadeira, a prefeita anunciou que iria rever a licença para que fossem construídos os espigões de Ponta Negra. Parte da população chiou e a prefeita voltou atrás. A Prefeitura também sinalizou, por meio de uma secretaria municipal, que iria mandar cortar umas boas e frondosas árvores no canteiro em frente ao shopping Midway Mall. De novo, vieram os protestos, e a idéia foi arquivada na mesma gaveta de onde jamais deveria ter saído.

Até o horário da feira das Rocas entrou nesta ciranda de vou-não-vou. Não que horário de feira não mereça atenção da prefeitura, mas até ontem esse parecia ser o tipo do assunto imune a qualquer possibilidade de polêmica. Por aí se vê que, com a ainda nova gestão à frente do Palácio Felipe Camarão, nada é impossível, minha gente. Mas de novo a insatisfação se fez notar e outra vez a prefeitura voltou atrás. E a mudança do nome indígena daquela rua no Alecrim? Tá bem, foi idéia de vereador, mas convenhamos que no contexto político-cultural da Natal de hoje, prefeitura e vereadores são quase a mesma coisa. Mas, felizmente, moradores se juntaram e conseguiram fazer a idéia morrer em poucos dias. Tem também o cachê do padre Fábio que, questionado publicamente, fez não só a prefeitura mas o próprio sacerdote vir a público para dar explicações. Neste caso, só não ficou bem claro se o dinheiro afinal foi ou não foi pago. Mas é como se não tivesse sido, porque no final das contas o que restou no ar também foi mais um digníssimo recuo.

O fato é que, a continuar neste ritmo, a atual gestão chegará ao final dos quatro anos de mandato com um conjunto inédito de realizações não realizadas. Quer dizer, um festejado balanço negativo recheado de obras que, felizmente, não foram feitas. De programas que, graças à providência (e à mobilização dos moradores) não saíram do papel. De planos que, justiça seja feita, mal tiveram tempo de ser anunciados e já tiveram que voltar rapidinho ao gabinete de onde vieram, com o rabinho entre as pernas.

E a população tem mais é que ficar feliz, soltar rojões, celebrar a prefeita. Claro que seria uma situação estranha, essa de o povo sair às ruas para dizer, batendo no peito, "a prefeita não fez nada", "viva o cancelamento da obra tal", "temos que defender a falta de realizações". Porque o normal, claro, é o último ano de governo vir estampado em anúncios de jornais que relacionam "mil obras", "duas mil realizações", listas assim em números redondos para bater o martelo e chamar a atenção. No caso da Natal de hoje, não é nem bom pensar que tipo de realização poderia estar incluída nesta lista final. Mas, sossegue, tudo está no seu lugar, porque afinal de contas a prefeita, em muito boa hora, sabe recuar como ninguém.

Sorte teriam os moradores se outros antes dela também tivessem rezado por essa estranha cartilha da inoperância alimentada por recuos. Porque recuos tivessem ocorrido a tempo e não teríamos, por exemplo, aquele paredão de prédios em frente à praia de Areia Preta, que privatiza o vento que antes corria gratuito entre as vielas de Mãe Luíza. Se alguém tivesse recuado, o calçadão da João Pessoa talvez não tivesse virado esse monstrengo urbano em que se transformou, sem ser nem calçada propriamente dita nem espaço para os carros. Um recuo tático e quem sabe a Nova Parnamirim da avenida Maria Lacerda teria crescido com um mínimo de planejamento urbano que muito lhe faz falta.

Todos esses casos e muitos outros – cada um pode fazer sua própria lista – reforçam a importância do passo atrás, daquele go back providencial, do devagar com o andor segundo reza a crença popular. E ser faltarem argumentos mais nobres para defender a atitude de quem, como diz o outro, dá para trás, a gente sempre pode recorrer ao velho e bom compêndio de letras da nossa música popular.

Vai dizer que você nunca ouviu Jorge Benjor cantando, em "Alcohol": "Em vez de uma nova trombada / Uma marcha ré com dignidade / É melhor do que ficar com pesadelos / Tédio, calça arriada, queda de audiência / Filme queimado". Parece até que a música foi composta com o artista em Natal para um dos seus shows, mas é pura coincidência. Já a arte de recuar, não – é atributo que se lapida com a um diamante, porque exige a disciplina da contrariedade, o sacrifício da autonegação e a sabedoria do arrependimento que vem no momento certo. Não é para poucos – é um dom particular dos eleitos.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

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