sábado, 20 de março de 2010

O governador foi preso. Viva o governador!


A esta altura, escrevendo com uns dias de antecedência, não posso afirmar que o governador afastado do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ainda esteja preso. Pode ser que sim, pode ser que não. Mas nada desmancha a evidência de que ele efetivamente foi preso. Se não o mantiveram na tal sala de dez metros quadrados são outros quinhentos, porque a imagem simbólica da prisão a esta altura é leite derramado. Um fato histórico, disseram muitos. Uma lição para os que estão soltos, provocaram outros. Uma fato lamentável, teria dito o presidente Lula, numa frase que, se dependesse do interesse de muitos outros, teria tido mais repercussão do que a própria prisão de Arruda.

Mas nada disso interessa. A prisão e o afastamento do governador são aqui apenas um pretexto banal, um tropeço distraído da História, para um problema maior – e permanente, do tipo que pode acontecer a qualquer momento, em Brasília, João Pessoa, Sorocaba ou Natal (estejam alertas). É aquele tipo de problema que todo mundo evita sequer comentar, aquele assunto que provoca tosse na mesa do almoço e instala silêncios constrangedores nas reuniões de família. Sim, amigos, por trás do fato histórico da prisão de Arruda está algo intolerável, o pior dos mundos, o fantasma absoluto que ninguém, seja potiguar, baiano, paulista ou brasiliense – ou uma mistura de todas essas coisas, o que é muito comum por aqui, no Distrito Federal – deseja sequer imaginar.

Este fantasma é a ausência de poder, aquela coisa que até no nome soa mal – a "vacância do cargo". O cidadão aceita tudo, perdoa qualquer deslize, admite qualquer falcatrua, curva-se a qualquer ditadura. O que ele não concebe, de maneira nenhuma, é não ter a quem recorrer (ou de quem reclamar, dependendo apenas da perspectiva pela qual se coloque o problema). Cheguei a essa conclusão após ouvir o comentário de uma colega de trabalho, no momento em que começou a crescer a hipótese de uma intervenção federal em Brasília. A colega reagiu: "Não quero saber se o governador vai ser Paulo Octávio (informação para quem chegou de Marte: àquela altura, antes da renúncia, o vice ainda era o governador em exercício), se vai ser o presidente da Câmara Distrital, se vai ter nova eleição, se vai ter interventor! O que eu quero saber", enfatizou a colega de repartição, "é se vão terminar os viadutos de Águas Claras".

Neste ponto, peço paciência, mas é preciso acrescentar umas informações de natureza local: Águas Claras é uma das cidades do Distrito Federal, entre o Plano Piloto e Taguatinga. Um paliteiro urbano que surgiu nos últimos anos (porque lá a altura máxima para os prédios é bem maior do que os seis andares permitidos no Plano) sem muito planejamento urbano. Sobretudo, sem vias de trânsito capazes de escoar o fluxo de carros que congestionam o acesso às asas Sul e Norte. E o tal viaduto, cuja construção por si só já vem causando um transtorno tremendo, era a esperança de resolver o problema. Para efeito de comparação, Águas Claras é alguma coisa como Nova Parnamirim, se todas aquelas casas e condomínios horizontais do bairro colado a Natal fossem convertidos em prédios de vinte andares. Sentiu?

Então, retomando: para a colega, que evidentemente eu estou usando aqui como uma espécie de "avatar" de grande parte da população do Distrito Federal, o problema não é nem a corrupção atribuída a Arruda, tampouco a prisão do governador afastado e muito menos a definição sobre quem vai sucedê-lo no governo, encerrando ou pelo menos diminuindo esse cipoal de dúvidas ético-institucionais. Para a colega e "avatar" do cidadão brasiliense médio – por sinal, o mesmo que elegeu Arruda e estava pronto para reelegê-lo em outubro – o que interessa é haver qualquer governo que seja, capaz de concluir os viadutos de Águas Claras.

É de dar o que pensar – e foi assim, pensando o que não devia, que me ocorreu essa evidência, útil não só para Brasília mas também para Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Boa Vista ou Natal (nunca se sabe): o que o cidadão médio não suporta, no fundo no fundo, é a ausência de governo. Deve ter alguma coisa a ver com ausência de pai, real ou simbólico, alguma leitura psicanalítica que se mete na política sem ser chamada. Também pode ser alguma coisa mais mítica, ligada à ancestralidade do ser humano, aquele tipo de sentimento que, se você puxar bem a linha do novelo, vai bater lá na Europa da formação dos Estados nacionais, do fim da idade média – essas coisas sofisticadas que dão um sentido à barbárie e salvam a gente da selvageria completa.

Não por outro motivo, a prisão do governador Arruda me lembrou aquela secular sentença que demarcava a passagem da coroa nas mais célebres monarquias que o mundo conheceu: "O rei está morto. Viva o rei!". Dizem os especialistas que tal frase se fez necessária no curso da História mais remota, em tempos de fossos, torres e grilhões, para acabar com algo muito temido pelo povo de então: o intervalo entre a vigência de um reinado e outro. Morto um rei, bastava dizer a frase para proclamar, antes mesmo daquele ritual complexo que é a coração, que um novo rei já estava imediatamente no trono – mesmo que naquele momento o novo monarca fosse um garotão tropeçando nas copas de vinho largadas na última festa nos corredores do castelo.

Interregno, acho que era assim que chamavam. Os súditos tinham pavor do interregno, aquele vácuo entre o reinado de um João I e um Joãozinho II. Pensando bem, no meio dessa confusão política em que afunda o Distrito Federal, alguém podia lembrar disso, criar coragem e fazer a proposta no almoço de domingo: que tal reinstalar a monarquia em Brasília, assim a título de teste para o resto do país? Com isso, não teríamos interregno, os viadutos estariam salvos e ainda ia pegar muito bem no high society internacional.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

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