quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Roberto, o show e o portão
Se alguém ainda tinha dúvida do altíssimo grau de maracatuísse da minha pessoa, tenho uma informação que desmancha qualquer vã esperança: final de semana passado fui ao ginásio Nilson Nelson assistir, pela primeira vez, a um show de Roberto Carlos. Eu devia ser o último brasileiro a não ter visto um show do “rei” – pensando bem, uma colega de trabalho viajadíssima, que quando não está na casa da irmã no Chile está escolhendo se fala inglês ou francês em qualquer país da Europa Central, também nunca tinha visto Roberto cantar assim, em carne e osso num palco em frente. E também fez sua estréia no último sábado na mesma ocasião em que eu. A diferença é que ela preferiu comprar um ingresso baratinho, distante do palco, “já que pra ver Roberto Carlos qualquer lugar serve”. Meu lugar na platéia, ao contrário, teve mais a ver com o preço cobrado – bem alto, estamos em BSB citi – do que com qualquer qualidade de desdém globalizado. Resumindo: ter assistido agora, quando o cara já tá na última virada da esquina da vida, a um show de Roberto Carlos, mais do que confirma minha matutice atávica. Reforça, bate com prego, sacramenta essa condição.
E o fato de eu ter ficado embasbacado com o show aí é que esculhamba logo tudo. Achei um belo espetáculo (veja as fotos do site oficial aqui), com aqueles ataques dos músicos capaz de derrubar os ouvidos do público, com uns arranjos diferentões deliciosos de se acompanhar, aquela luz caprichada e espetaculosa que fica sutil quando é pra ser e torna-se rimbombante quando o ritmo da canção pede. Também apreciei a mais que natural espontaneidade de Roberto Carlos, à vontade naquele canto tão dele, gigante mesmo tendo a mesma dimensão dos músicos quando medida pela pura geometria do palco, um roquenrol man quando o momento pedia, um brasileiro gente boa quase sempre, um performer do romantismo em outros sets do show.
Mas se é pra destacar um momento, uma canção, fico com a hora em que Bob Carlos canta “O Portão”, porque esta é uma música que me intriga há tempos: ela tem uma certa e muito particular melancolia que marca uma grande fase de Roberto Carlos nos anos 70. E não é exatamente a chamada “fase soul” que certa gente lembra assim como se arranjasse uma desculpa pra admitir que gosta de Roberto Carlos mas não pode ser considerado matuto, brega ou coisa semelhante só por isso.
“O Portão” é o resumo de uma tristeza presente em grande parte do cancioneiro de Roberto e Erasmo daqueles anos 70 que, se muitos guardam como memória de uma juventude menos tumultuada do que a dos tempos atuais, também foi uma era vivida sob as botas de um regime repressor não só do ponto de vista político mas também comportamental. E Roberto e Erasmo, como bem sabe quem leu seu biógrafo Paulo César de Araújo, foi, por sob a imagem de ídolo comportadinho para o bem dos generais, um transgressor como foram Odair José e Agnaldo Timóteo (quer saber mais? Leia “Eu não sou cachorro não” do autor citado). Neste panorama aí, “O Portão” sempre me pareceu um paradigma das sutilezas do período, como se Roberto legitimasse o “bom comportamento” da juventude amestrada pelos militares ao mesmo tempo em que, muito de leve, lamentasse esse conformismo.
Explico: “O Portão” narra muito claramente a volta para casa de um jovem que não deu certo na sua aventura no mundo lá fora. Ora, isso num período em que a juventude do mundo inteiro queria mais era reinventar este mesmo mundo à sua maneira nova, e quanto mais longe da casa dos pais melhor este objetivo podia ser alcançado. Só que a canção fala de uma desistência, um give up, um cara jogando a toalha, um fraco que romantiza o retorno falando sobre o reeencontro com o portão de casa, a antiga namorada, o velho cachorro de estimação. Não consigo ouvir “O Portão” sem sentir um pontinha de ironia na embalagem idealizada desse retorno.
É como se Roberto e Erasmo não estivessem louvando a valorização da casa dos pais, de onde cada um de nós nunca deveria ter se afastado, mas mostrando a ilusão que isso representa num momento em que o importante não é voltar ao portão da casa paterna, mas continuar avançando num rumo da estrada que cada um escolhe na transição da adolescência para a juventude. O próprio Roberto Carlos é um exemplo disso: quando foi que ele voltou a Cachoeiro de Itapemirim uma vez que foi embora construir sua vida de artista no Rio de Janeiro sem garantia alguma? Nunca. Se ele voltou, foi no plano do simbólico, como ademais tanta coisa que qualquer ser humano vivo faz ao longo da vida, experimentando em forma de representação algo que a realidade não permite que se faça na prática. “O Portão” é o retrato desse retorno impossível – e, se você pensar bem, incoerente com a trajetória da vida de um ser humano.
Fica bem na canção, justo porque a música (como o cinema ou a literatura) é uma boa forma de exercitar em forma de projeção tanto uma rebeldia que o sujeito não consegue abraçar de fato quando um conformismo que o rebelde, no fundo, chega a desejar ter em meio às batalhas mais acirradas da vida.
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