quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Rompimentos



Casais rompem. Amigos também. Políticos, quase sempre. O que seria da política se não fossem os rompimentos? Os grandes, os pequenos, os autênticos, do tipo que tiram tudo do lugar, ou os de oportunidade, que apenas fingem uma mobilidade inexistente? A partir daqui, vai cada um para o seu lado, num rearranjo do estado das coisas, as definitivas ou as impermanentes, num movimento que deixa rastros, abre feridas e depois joga variáveis porções de sal no interior de cada uma delas só pelo prazer de parecer prevalecer intacto sobre o outro com quem se rompeu, embora seja de impressão geral que as cisões são democráticas em questões de perdas e danos. Pelo menos quando há cisões de fato – e não as intempéries de zum-zum-zum que quem vive delas semeia para festejar nas colheitas vãs dos antifatos da vida.





Vem da pequena, imutável, circular e impermeável política local do país do elefante a notícia espetacular de mais um rompimento tão drástico quanto o parto de uma formiga. Ouriços, fogos, perplexidades autofabricadas, um vasto e novo veio de fofoca disfarçada de jornalismo que se abre no falso minério dessa terra tão infértil no terreno do avanço cidadão.  Um vice corta os laços, uma titular atira-lhe de volta as tesouras do rompimento escandaloso, uma eminência parda subitamente ganha cores – e a vida cá embaixo continua, com os súditos da prefeita de fantasia tratando de ganhar a vida longe dos alvoroços dos colunistas remunerados.


O rompimento, aqui neste estágio, é apenas ingrediente de conversa no balcão do comércio, na mesa de bar, na calçada enluarada do Vale do Pitimbu, na orla onde os ambulantes estão preocupados mesmo é com a nova variação do forró-padrão capaz de interessar à clientela em férias. Há, claro, subscrições – algumas extremadas – a um lado ou ao outro, mas tudo não passa de uma simulação de conflito que de fato não existe, de um exercício pessoal em que cada projeto de cidadão não realizado precisa ter a sensação de importância. Desconhecem que os verdadeiros rompimentos são outros, muito mais distantes da terra dos elefantes acomodados.



O rompimento real e necessário refaz os conceitos, apara arestas onde muita gente se feriu sem perceber, assim como quem passa correndo pela sala e enfia o joelho na quina da mesa. Constrói novas pontes e explode outras. Desmente noções estabelecidas e injeta verdade nova em algo que só  os visionários enxergavam e, coitados, sozinhos anunciavam. Os  rompimentos têm essa capacidade de construir com as mesmas peças um novo quebra-cabeças, durável até o ponto em que este, por sua vez, esteja já gasto de tanto ter sido jogado pelos adversários e aliados. Os rompimentos também são traiçoeiros, e muitas vezes mostram mais as semelhanças das partes que se apartam do que as diferenças que elas querem fazer crer que levaram a tal arrebentação.

Em torno dos rompimentos, também estão os coadjuvantes. Aqueles que, na ansiedade de tirar proveito da briga de casal, produzindo novos e impensados casamentos, terminam por inocentar a violência de um cônjuge que até bem pouco tempo era visto como intolerável. É preciso paciência, tempo, uma certa periodicidade muito própria dos rompimentos para que se mostre a reação apropriada a eles: caso contrário, o suposto beneficiado entra na festa e, perdendo a chance de mostrar a vulgaridade do casamento desfeito, termina por legitimar o falso – e temporário – divórcio. Calma: os rearranjos não se fazem de uma eleição para a outra; mesmo quando os rompimentos se dão menos de um ano após a vitória de algo que parecia tão sedimentado.

Os rompimentos também podem ser estágios, parte de uma escadaria de etapas que a vida vai colocando sob seus pés sem que você se dê conta, como num desenho animado surreal e imperceptível a não ser no nível do sonho. Você vai subindo – ou descendo, conforme o tempo, a idade ou a pessoa – e nada pode permanecer exatamente como estava. Falhas no corrimão de repente ameaçam a segurança de uma subida – ou descida – antes vista como tão normal. Um pedestal que parecia sóbrio como mármore imperial começa a parecer manchado. Mesmo assim você ainda aprecia aquela escadaria e reconhece a importância de cada degrau. Mas vê se romper o ritmo daquela escalada antiga, a elegância de lorde da ascensão, e acha por bem caminhar em passos mais pausados, que a idade traz o cansaço, a maturação, as memórias e o bom senso – tudo junto, como essa massa caótica de mágoas que produz um rompimentos. Você não quer julgar ninguém e muito menos se declarar puro e superior ao final da subida, mas os rompimentos sem espetáculo desnecessário fazem parte do processo e por isso mesmo não precisam ser definitivos. Há uma etapa em curso.

Mas tudo isso é uma imagem vaga demais para quem vive dos rompimentos políticos, precisa deles, tira deles o tostão publicitário de suas notas, alimenta com eles as bolas de cristal de suas previsões batidas, faz cara de portador de muitas fontes e conhecimentos secretos que lhe garante, se não o acerto jornalístico sobre a cena do próximo capítulo, ao menos a tranqüilidade de saber que optou pelo lado certo na hora da decisão: depois tudo volta ao normal, mas no instante do cisma, isso é muito importante e precisa ser muito bem pensado. Com quem você vai romper para ser coerente sem perder o trânsito com a parte preterida?   

Lennon rompeu com MacCartney, Sarney rompeu com os militares, João Bosco rompeu com Aldir Blac – ou terá sido o contrário, a mesma ilustração na ordem inversa. Ou talvez não existam rompimentos unilaterais: assim como dois bicudos não se beijam, tanto quanto se um não quer o outro não se aproxima, é possível que os rompimentos reais só se dêem quando por acordo mútuo. E ainda assim são variáveis como o multiculturalismo brasileiro. Convém nunca generalizar, mesmo que a dissolução Rosa-Robson pareça um exemplo tão estandartizado dos falsos cismas. E além do mais, Aldir Blanc e João Bosco já voltaram a se entender – sinal de que o rearranjo se completou, por mais que tenha demorado para acontecer. Na política, costuma ser bem mais rápido – e intelectualmente desonesto. Na vida real, leva o tempo que uma pedra em formato idêntico a um elefante gasta para, triturada pelos ventos e pela chuva, reduzir a pedregulho o que parecia montanha.

Falando nisso, será que um dia Dilma vai romper com Lula, como querem, torcem e cada vez menos analisam os articulistas políticos do ex-país do Carnaval?

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