terça-feira, 26 de julho de 2011
Minha viagem com Amy
Em junho de 2008, o SOPÃO escreveu, quando ela estava vivinha da silva, cantando como um órgão colonial que não cabe num realejo comum, mas não exatamente vendendo saúde. Remember:
Quatro horas da tarde em ponto. Eu, como sempre, saio de casa na última hora, em dia com o meu atraso, rumo ao trabalho. Num jato visual, sobrevôo com pressa o entulho organizado de jornais, papéis, CDs, livros e revistas sobre o birô que nos serve de escritório na sala, pertinho da porta. Recolho um disco que você não vai encontrar em loja nenhuma. Coisa exclusiva, estilo "eu que fiz". Mais uma das dezenas de coletânas que me divirto fazendo a partir dos CDs que fui comprando ao longo do tempo e outras fontes mais. "Fritada Musical" é o nome do CD - tenho essa mania estranha de botar nomes neles, preparar uma capa caprichada usando fotos ou ilustrações prontas no computador. Num interminável segundo, estou na garagem, e noutro, saindo da quadra, mais um pouco, mais outro e já estou serpenteado pela 316, logo ali abaixo, e mais outro tanto e pronto - aqui estou eu navegando célere na L4, uma espécie de Via Costeira que, à guisa do mar, tem o Lago Paranoá como margem do caminho. É quando enfio no CD player do carro o disco que capturei apressado ao sair de casa.
Neste momento, dá-se algum fenônemo paramusical de efeito de alta duração e reverberação potencial super-extensiva. Tudo porque o carro, praticamente fechado, é envolvido em uma pastosa voz feminina, uma gutural cantiga de acento meio blues mas ao mesmo tempo despudoradamente pop, uma cantora daquelas que anula tudo em volta quando está exercendo seu ofício ou cumprindo seu papel neste mundo (às vezes, num momento de elevação humana, essas duas coisas coincidem). Um negócio meio Nina Simone e meio Janis Joplin, como uma Marisa Monte lubrificada pelas sarjetas ou um Tom Waits vincado por fisiologias e angústias femininas. Foi então que caiu a ficha: era ela.
Amy Winehouse entrou na vinha vida pelos olhos, antes de preencher docemente os meus ouvidos, com sua voz que mais parece uma língua rugosa massageando tecidos sensíveis. Foi numa manhã qualquer de uns meses atrás, quando eu lia, página por página - que é como faço, com essa obsessão de não pular nada, o que já é quase um toc robertocarliano - um exemplar da revista Rolling Stone. Na virada comum de uma página, ela surge toda tatuada, parecendo uma égua pop, com aquele cabelão setentista, aqueles lábios de sorvedouro e, sim, aquele cheirinho a esta altura até meio enjoado que mistura bafo de álcool com odor de marketing. Eu li aquilo como quem tira sarro de uma piada, impressionado com a capacidade de jornalistas cults em retocar uma imagem, reproduzindo pela enésima vez um procedimento que a gente já viu com tantos outros. Mas revistas não tocam - e eu fiquei sem ouvir e sem sentir a presença vocal daquela moça que me pareceu programadamente esquisita, de uma autodestrutividade tão estilosa quanto forçada. Amy Winehouse não me engana, pensei, ao fechar a revista. Mas fiquei com uma coisa na cabeça: quem ia gostar dessa moça é meu amigo Carlos de Souza. Ela é bem o tipo de persona musical de que ele gosta. Como dizem, passou.
Aí veio uma elipse até o que em que meu amigo Carlos de Souza, justo ele, anunciou que estava vindo passar um dia em Brasília. Vivas! Diversão pela frente! Algumas horas com um velho amigo, uns passeios pela cidade na companhia de uma pessoa que naturalmente dá uma cara nova aos lugares por onde a gente passa todo dia, promessas de novidades na inevitável troca de recomendações sobre livros e discos à mão cheia. E Carlão, logo no início da nossa ronda pelaí, cismou de me comprar um CD de... Amy Winehouse, o que serviu de desculpa pra gente bater pernas por um bom número de lojas de discos da cidade.
Por mais que eu e Carlão rodássemos pelas lojas, nenhuma tinha o CD de Amy Winehouse. Ao menos não a versão mais barata, com capa de papelão, pela metade do preço. Descobrimos, numa loja da rede 2001, a principal de Brasília (a caminho de fechar de vez, infelizmente) que o disco chegaria em alguns dias, um pedido havia sido feito, porque todos os que estavam disponíveis haviam sido vendidos rapidinho. Carlão já não gostou: êpa, já tá ficando popular demais! E eu não gostei da reação dele: êpa, deixa de frescura de exclusivismo de intelectual! Carlão foi embora e, até a última hora, tentou achar o disco para me dar de presente. Mas nem na loja do aeroporto o encontramos. Eu já estava achando aquilo um exagero, mas se há alguma coisa que me liga ao meu amigo Carlão é um negócio chamado paciência - pode perguntar a ele que ele vai confirmar. Carlão, quando não se sente muito à vontade em determinada situação, é tomado por uma ansiedade capaz de fazer estremecer uma multidão. Mas disfarça tudo muito bem com uma boa dose de auto-ironia. Eu sou tão ansioso quanto ele - ou mais - mas escondo o liquidificador interno usando uma capa de semicatatonia nas ruas por onde ando. Resultado: ele parecia uma mula teimosa num curral desconhecido, eu, um monge alienado numa casa pegando fogo. Amy Winehouse iria se divertir muito vendo essa dupla vagando pela seca de Brasília em busca de um CD com sua voz.
Vulgaridades literárias à parte, Carlão se foi. E eu, atento àquela importância que ele deu a Amy Winehouse, resolvi esquecer todo o marketing tipo "vou botar pra foder comigo mesma" da moça e fazer um teste. Desses que todo mundo faz: consegui, nas fontes alternativas da internet, umas músicas cantadas pela bad girl. Com as músicas devidamente abrigadas no meu computador, ouvi alguma coisa mas não me impressionei muito. Indiferente - acontece, as circunstâncias às vezes são tudo na vida da pessoa - , passei tudo para mais um dos meus inúmeros CDs caseiros de coletâneas, escrevi com aquelas canetas especiais um nome no bicho - "Fritadeira Musical" - e esqueci o petardo por ali pelas mesas.
Hoje, a caminho do trabalho, botei o CD Fridadeira Musical no carro e senti o impacto sonoro da voz pastosa, do estilo quente, do timbre negro da branquela autodestrutiva Amy Winehouse. Não fico lendo sobre os porres dela, não me impressiono com sua estampa retocadamente decadente, não me identifico muito com esse lance de "o mundo é uma merda e por isso vou beber até morrer". Mas a maneira como Amy Winehouse canta, colocando aquela voz saturada de humanidade e juventude inútil sobre bases que lembram a musicalidade inocente dos anos 50 (ao menos nas faixas que ouvi, e não me pergunte quais são, porque não sei os nomes) dispensa qualquer moldura. Ela se basta - e se efetivamente morrer amanhã ou depois depois da enésima bebedeira eu sinto muito, meu bem, mas talvez não fosse para tanto. Bastava seguir cantando. Idem para Cássia Eller, idem para Renato Russo. Antes de qualquer coisa, essas figuras, sabe-se lá porquê, são excelentes intérperetes de perorações musiciais.
E deve ser por isso que gostei tanto de Amy Winehouse sem ingressar no culto à estampa mercadológica de sua figura. É que eu gosto de cantores: gosto, por exemplo, de Tony Bennett, que meu outro amigo, Plácido Fernandes, ouvinte exigente, não aprecia. É um negócio pessoal: gostei de Winehouse como gosto de Tony Bennett, como gosto de Mart'nália (ela merece uma postagem à parte, com aquele desempenho que mantém no ar os últimos ecos da voz de Cássia Eller), como gosto daquele disco de canções italianas que Renato Russo fez, numa postura assumida de intérprete, como gosto de Roberto Carlos.
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