sábado, 2 de julho de 2011

O adeus machadiano


A ironia destilada de um “Brás Cubas” e a prosa incomodamente torpe de um “Quincas Borba” bem autoriza o leitor de Machado de Assis a imaginar que vai encontrar em “Memorial de Aires”, o livro derradeiro do célebre autor brasileiro, um antipanegírico final, daqueles que não poupam nem deus nem o diabo, muito menos a humanidade que se encontra entre um e outro. Se o mesmo leitor for informado de que o livro se passa entre 1888 e 1889, datas da abolição da escravatura e da proclamação da República, nas crises convulsivas brasileiras do segundo reinado, aí é que aquela expectativa aumenta, com o crescente sentimento de que as duzentas e poucas página do livro serão poucas para conter tamanha indignação, esse sentimento pátrio tão cultivado quanto mais convenientemente forem as circunstâncias políticas e que, ao fim da história, pode muito bem fazer as coisas da política andarem para trás do que para a frente, como aliás já aconteceu mais de uma vez.

Mas cortando a digressão do final do parágrafo, diga-se de uma vez, com a ênfase da próclise que combina com o verbo de Machado: “Memorial de Aires”, livro que, sendo um diário de notas curtas, muito lembra os blogues atuais – e pode muito bem ser lido como um diário virtual daqueles dias tumultuados - , corresponde a uma tremenda puxada de tapete do Bruxo do Cosme Velho diante dos anseios da manada. Não é um livro escancaradamente irado, não tempera suas frases com colheres de ácido verbal, não julga explicitamente nada nem ninguém. Por isso mesmo, foi considerado ao longo do tempo pelos historiadores da literatura como um livro até menor no conjunto dos cinco melhores de Machado – além de “Quincas” e “Brás”, há ainda “Esaú e Jacó” e o astro “Dom Casmurro”.

“Memorial de Aires”, sendo a escrita de um personagem que é um diplomata aposentado, é um relato em panos quentes, um arrazoado sutil construído ao fim de uma carreira por quem tem vocação conciliatória e faz desse dom – ou dessa maldição, conforme seja cotejada à própria história brasileira que serve de pano de fundo à estória narrada – uma lente diversa a estudar a sociedade, os desafios, as expectativas e as possibilidades do cenário em volta: o Brasil daqueles dois anos tão férteis para gerar um outro país no século adiante.

Do ponto de vista da crônica histórica, está lá, à maneira distanciada e algo cool do conselheiro Aires, uma prévia das conseqüências que uma abolição meramente oficial trariam para o futuro do país. Do ponto de vista humano, também estão, igualmente ao modo de ver as coisas do personagem, o retrato ainda algo embaçado de certo caráter brasileiro indeciso entre a tranqüilidade média das coisas estabelecidas e a necessidade de se colocar fora do alcance das debilidades sociais que o último país da escravidão vai deixando.

Uma nota à parte para a edição de bolso que a L&PM mandou às livrarias: por sob o aspecto Classe C do precinho, R$ 9,90, está um prático, instigante e condensado volume contendo notas sobre o Rio de Janeiro da época, mapa da cidade de então e panorama da vida lá e mundo afora enquanto o jovem Machado, filho de agregados mais Classe C do que qualquer um dos dias de hoje, tornava-se o mais canônico dos escritores brasileiros.

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