sexta-feira, 24 de junho de 2011
O momento da consagração
Temos um novo herói – e não vamos reduzir esse fato apenas para parecer melhores do que somos. A dúvida é: será que o espera a mesma sina de tantos outros? Ou a consciência de "fazer história" afeta o modelo de atleta pop star?
Nada mais desagradável – de um desagrado pequeno e circunstancial, mas não menos perverso – do que tentar minimizar algo grande que está transcorrendo no ar, no espírito de um povo, na visão espelhada que uma nação obtém de si mesmo. Da noite de quarta-feira até agora, se o Brasil inteiro por um momento se olhar no espelho como faz aquele garotinho no filme “Era uma vez na América” com expressão de quem tenta entender quem é e em que está se transformando, vai ver a imagem amalgamada de um povo inteiro nos traços de um moleque de bola a caminho do que ainda não sabemos exatamente – embora desconfiemos, e embora não gostemos do que nos diz esse desconfiar.
Desde quarta-feira, o Brasil em frente ao espelho se vê em Neymar. Não é nem no Santos propriamente, nem na dupla Neymar-Ganso, nem no trio Neymar-Ganso-Elano. Porque dupla fica muito bem em cantores caipiras e trio de força simbólica absoluta só mesmo a santíssima trindade. Quando o país quer se admirar no espelho de suas próprias possibilidades tantas vezes adiadas, prefere a figura única e sintética de um herói individual. Fittipaldi, Senna, Zico. Já tivemos vários, cada qual removido do posto supremo à sua maneira. No momento, temos um novo titular, que acabou de botar o pé direito no piso transcendente deste podium tão particular. Seu nome, com rima e tudo, é Neymar. Santos, Ganso e Elano apenas compõem o caldo de cultura que tempera ao paladar certo das massas a carne do ídolo.
A vitória santista na Libertadores da América, gerando todo aquele espetáculo de comemoração, choro, congraçamento e epifania coletiva demarca definitivamente a ascensão de Neymar ao posto único de ídolo nacional do momento. Ele merece, o país idem – quem não tem sede mínima de um momento de elevação acima da rotina trabalhista honrada da vida comum deve ter também, como diria FHC, algum problemas psicológico. Não é bem isso o que incomoda. Tampouco o que surpreende.
Começando pela surpresa, se é que a palavra é a mais apropriada, espanta um pouco perceber o quanto a consciência da existência desse posto também se estabeleceu – inclusive entre o candidato a ocupá-lo. Nas entrevistas em meio à comemoração, ouvimos o bravo Neymar bradar ao microfone da Sportv de plantão: “Hoje nós fizemos história”. Mesmo sabendo que no circo monetário do esporte atual cada gesto – da forma de comemoração do gol até a marca na camisa – é microscopicamente planejada, surpreende, espanta, pega o cidadão de jeito ouvir o astro da partida declarar com todas as vogais e consoantes algo que até algum tempo atrás se deixava para os analistas – os “formadores de opinião” que também vicejam na área do futebol globalizado. O fato de Neymar se adiantar e já colar em si mesmo, antes mesmo que os legitimadores o façam (com toda justiça, não é isso o que se discute aqui), o fato de ter “feito história” – e ainda que “fazer história” vá se tornando um chavão gasto já meio incapaz de abrir a fechadura de qualquer raciocínio mais avançado – aponta para um significado fora de campo.
Não basta jogar bem, brilhar em campo, vencer a competição propriamente dita. É preciso vencer a batalha simbólica que está lá fora do estádio. Neymar entendeu isso, cacifou-se antes que outros o fizessem, faturou duplamente a noite do seu estrelato. A dupla exposição, simbolicamente imbatível e insuperável, com o totem Pelé, ligando as pontas soltas de dois grandes momentos do futebol de clubes no Brasil, completou o retrato desse momento de consagração. Por isso pode soar cínico, desrespeitoso e pequeno deixar que uma ideia aparentemente fora do lugar manche a visão desse fenômeno esportivo, midiático, autêntico mas, enfim, passageiro. Mas qual deles não é – passageiro?
O fato é que vendo a festa do Santos, o momento da consagração de Neymar, o encontro de décadas Neymar-Pelé, não há como fechar também os olhos para a mosca na sopa enxerida que insiste em lembrar de outros nomes, outras consagrações. Ronaldo, Ronaldinho não é aqui letra de canção infantil a embalar o sono de futuros moleques brilhantes soltos em Pacaembus e Maracanãs da vida. No jornal na mesinha ao lado da tevê, o caderno de esportes comenta as olheiras de Ronaldinho Gaúcho nos treinos do Flamengo, a falta de rendimento do ídolo milionário. E ainda flutua na lembrança os “coments” em torno da despedida de Ronaldão, seu legado, seus barracos e sua pança. Os dois já tiveram seus dias de Neymar. Neymar terá seus dias de Ronaldão e Ronaldinho?
Deixa pra lá: não vamos estragar a festa, a lembrança ainda recente da vitória, o simbolismo da vibração e, só pra jogar outro assunto sobre este (o que parece ser a única maneira de estancar sangrias desagradáveis), o quanto este simbolismo nos antecipa sobre a Copa de 2014, a Copa brasileira que, de uma hora pra outra, parece que ninguém quer. Ou, pelo menos, quem tem canal para dizer o que pensa ao país – ainda que seja um tuite jogado no mar revolto das redes sociais. Porque diante do levante de alegria proporcionado pela vitória santista na Libertadores, frente ao momento de consagração de Neymar, também não há como estranhar um certo silêncio de uma parcela da população que, jornalismo fiscalizatório selecionado à parte, deve sim estar torcendo para que o país tenha um campeonato mundial à altura do seu fervor.
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