sexta-feira, 24 de junho de 2011

Sexo, drogas e (falsas) soluções



Por sob a crosta bela e suja de sexo e drogas que serve de glacê ao bolo literário de Reinaldo Moraes arde o custo das soluções simples dos tempos atuais (ou de todos, o que é bem pior)

Na superfície, na prosa de papo de rua, na paraliteratura de mesa de bar, a “Pornopopéia” de Reinaldo Moraes é uma enxurrada verbal de confissões aliteradas, um jorro moderninho-psiquê que derrama a lama de uma história comum dos dias vigentes em narrativa de afunilamento dramático progressivo com atmosfera rock and roll fim de século. Na gíria, na isca da palavra, no pau da letra, a Pornopéia é esse caleidoscópio caótico de situações urbanas onde se mesclam e se fodem família, dinheiro, cultura, poesia, propriedade, futuro – num monólogo que aplica ao asfalto esburacado contemporâneo o fluxo de conversa-consciência de um neo-Riobaldo urbano, vencido e covarde, pero mucho boa gente, ao seu ouvinte metalingüístico que se no papel é o editor do dito livro que se lê, na literalidade é o próprio leitor convertido em editor de tal antijornada rumo àquele lugar onde tudo é nada, sem rima que dê solução.

É sedutora essa forma de escrita que joga no mesmo caldeirão o niilismo prático que legitima a preguiça crônica em ritmo de sexo, drogas e rock and roll – embora este último item não seja muito presente de maneira propriamente dita ao longo das páginas nervosas do livro. A musicalidade está mais no espírito da narração, na turnê fugitiva de seu protagonista terminal, o malandro-intelecto-pop-qualquer-coisa Zeca, e na fauna que o cerca e o conforta, à maneira dele. Entre pó, trocadilhos, coxas e bucetas segue este Zeca movido a todos os defeitos, mas inocente do crime supremo de que o acusam. Sua narrativa-desabafo é assim como um documento das falências todas do tempo presente, dita com um ritmo de tambor literário capaz de fazer o leitor engolir as maiores barras sem sentir propriamente aquilo que se chama de ânsia de vômito. Tudo desce redondo. Tudo, menos a armadilha que essa bad trip toda vai construindo em torno de seu herói sem caráter – esse Zeca que não é Macunaíma porque, no fundo (ops), é um bom sujeito no lugar errado e na hora imprópria. Mas quem mandou ele se meter lá, entre o traficante mais próximo e o tiroteio policial mais espetacular da semana?

A questão é que, por baixo dessa saltitante crônica contemporânea da urbanidade perdida, tanto no sentido do trato quanto no da arquitetura das tais relações humanas, há um recado nada simples. A superficialidade aparente dessa “Pornopopéia”, com seu sexo de palavras explícitas e sua decadência de drogado escancarada, facilita a identificação, favorece a projeção e arredonda a leitura, mas deixa entalado na garganta da fruição esse caroço nem um pouco pop, rock ou ligeiro-qualquer coisa: o que se lê ali é a vencida, humilhada, torpe e bêbada defesa individual de um cidadão que, antimodelo para o que quer que seja, é incapaz de se provar inocente do único dos defeitos que ele não tem – o instinto assassino banalizado dos mesmos dias atuais. Então, como se diz, vamos combinar: Zeca não presta, mas não matou ninguém. O problema dele – e o nosso, e dos nossos vizinhos – é que nunca foi fácil fazer essa distinção. Fácil, aliás, é não fazê-la. Simplifica as coisas, torna a vida menos difícil. E neste ponto a “Pornopéia” de Reinaldo Moraes mostra, categoricamente e com uma beleza poluída e fascinante, a contradição que cinde os espíritos desse tempo que nos envolve agora mesmo. Ou de todos eles, humanos tempos, o que seria bem pior.

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