quinta-feira, 2 de junho de 2011

O dia em que ouvi João com décadas de atraso


Joãozinho, aquele moço recatado que vive socado num apartamento no Rio de Janeiro remoendo notas musicais e que de vez em quando bota a voz pro lado de fora e lança um novo disco que já nasce clássico, vocês sabem, está até na capa do Correio Braziliense deste 2 de junho, está fazendo 80 anos. A bossa nova, se sabe, é como filho de Geni, tem um punhado de pais a lhe abençoar o sucesso, o bom gosto, a intervenção brasileira na maneira como o tal ser humano faz música, do Japão à Venezuela, do Carnegie Hall ao Ovidão de Parelhas. A música é boa, e isso basta. Há também quem não goste, ache enjoado demais, e isso também é normal. Meio anormal, se a gente pensar bem, é João Gilberto chegar aos 80 anos vivendo trancado naquele apê carioca. Mas ele tem as redes dele, esquemas que sobrevivem à passagem do tempo, inexorável como suas gravações do repertório de Tom Jobim, Vinicius e algumas recentes de Caetano. Viva João 80 anos, mas... será que vamos ter de ler e reler, outra vez, nos cadernos comemorativos, aquele velho mote sempre que o assunto é bossa nova e João Gilberto?

Sim, meu caro, onde você estava quando ouviu pela primeira vez o gênio de Juazeiro cantando "Chega de saudade"? O mantra, durante muito tempo, foi esse. Todo mundo tem uma narrativa sobre este momento, um êxtase de transcedência que parece ter colocado em suspenso os mais sensíveis corações musicais em tal momento. Caetano já contou o dele, Edu Lobo tava em Recife, não sei quem tava não sei onde. Disco enganchado. Pois se é assim, antes que começe tudo de novo, deixa eu aproveitar para uma postagem bolada e jamais publicada aqui no Sopão: o momento, com anos de atraso, em que ouvi João Gilberto pela primeira vez.

Foi em 1979, eu havia acabado de comprar um daqueles LPs tipo pau-de-sebo, coletânea oportunista para os críticos mas absolutamente econômica para os meus tostões de estudante que era. Baita coletânea, chamada "Disco de Ouro", com que a Warner tentava seduzir o ouvinte a adquirir outros títulos de seu vasto catálogo. Tinha Elis Regina cantando "Altos e baixos", tinha Raul cantando "Por quem os sinos dobram", tinha Baby cantando "Menino do Rio", tinha algo que até hoje me deixa meio mole que era Zezé Mota cantando "Dores de amores" (e eu nem sonhava em saber quem era o negão Melodia)e tinha, sim, tinha, um outro desconhecido chamado João Gilberto cantando "Wave". Gravação oportunista sim, que acabava antes do final da música (como acontecia em outras faixas) apenas para que no disco coubesse o maior número de artistas possível.

De maneira que meu "Chega de saudade" atrasado de trinta anos foi "Wave", com aquela introdução tomjobiniana que trinca os dentes até hoje de tão boa. Eu morava no interior, era adolescente e naquele tempo, lembrem, o mais próximo que havia da internet era a Rádio Rural de Caicó AM (eu morava ali perto, em Parelhas-RN). Nem a Rede Globo tinha chegado à cidade - a gente assistia ao monopólio visual do fim da TV Tupi, retransmitida de Recife, razão pela qual até hoje os nomes dos bairros da capital pernambucana me falam mais ao coração do que os de Natal. O leitor deve estar estranhando, achando que eu vivia em Marte. Era mais ou menos isso, mas saiba que vivíamos muito bem, na medida do esperado e possível.

John Lennon tem aquela frase célebre, de que os Beatles se tornaram mais populares do que Jesus Cristo. Só se for na Inglaterra dele ou nas capitais de muitos de vocês que me lêem agora. Porque naquele tempo e lugar, uma cidade do interior nordestino no final dos anos 70 a milhas e milhas da costa dourada, não chegava tudo não. Até os Beatles tinham que dar um duro danado para aparecer por lá décadas depois de terem encerrado as atividades. Não tenho vergonha de dizer que tomei conhecimento de quem era o senhor Lennon no preciso dia em que ele foi morto, por obra e graça de um negóio que existe até hoje e se chama Jornal Nacional. Depois, claro, foi aquela overdose informativa sobre os garotos que mudaram o panorama da cultura pop (não é isso que está em questão aqui, mas o alcance simulado de fenômenos de massa).

Hoje João Gilberto faz 80 anos e tudo mudou. Todo mundo tem internet em Parelhas ou Carnaúba dos Dantas e ninguém faz questão de ouvir "Wave" de queixo caído se tem Calcinha Preta arriada à disposição. Compreendo os espíritos de cada tempo. Mas, junto com a falsa vergonha de ter conhecido João Gilberto em 79 e sido informado sobre Lennon no dia em que o mataram, guardo a constatação, talvez vigente até hoje (há que se pesquisar e comprovar) de que o interior, por receber menos e mais tardiamente as informações, tem um poder de reter e analisar melhor o impacto de cada uma delas, ao contrário da nossa pressa compulsiva nas metrópoles arruinadas. Conversando com atores do "Ricardo III" montado pelos Clowns de Shakespeare, um dele registrava o espanto com o (para ele) inesperado conhecimento do repertório pop usado na peça pelas pessoas do interior. O ator notou que muitos estavam bem mais familiarizados com aquele cancioneiro interplanetário tipo Supertramp do que ele, habitante do litoral bombardeado por tendências e frequências. É por aí a explicação: demora a chegar, mas também demora a ir embora e ser trocada por outra. Fica mais, ecoa muito, é consumida sim, mas sem a agonia que aprendemos com os fast foods da esquina metropolitana.

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