sábado, 11 de setembro de 2010

Um filme capitalista


O título é dramático e chamativo - "A terra treme". O conceito, consagrado - o mais legítimo representante do neorrealismo italiano que marcou a história do cinema mundial. O método não fica por baixo - filmado sem atores, mas com pescadores representando o que de fato são na vida real. O momento, então, dispensa comentários - é o cinema feito nas ruínas que sobraram da Itália mais pobre depois da tragédia social e humanitária que foi a II Guerra Mundial. E o propósito incidental não deixa por menos - dirigido por um aristocrata comunista, um tipo único não só na história do cinema mas talvez da própria trajetória humana, Luchino Visconti, espera-se do filme nada menos do que um libelo por igualdade entre os homens em um momento crucial de reconstrução da história da espécie. A fotografia, naturalmente, é em preto e branco, o que diz pouco sobre a como ela toma forma na tela. É mais que branco e preto com nuances de sombra, é uma ausência de cor que torna ainda mais gritante a realidade que o filme espelha e refaz.

Era tudo isso o que passava pela minha cabeça quando peguei a caixinha do DVD de "A terra treme", disposto a preencher mais uma daquelas inúmeras lacunas referenciais que a gente vai deixando para trás enquanto vive a vida. Para além de confirmar cada uma das expectativas em maior ou menor grau - o que é comum ocorrer com obras consagradas - deu-se uma surpresa que o tempo explica melhor. Mas eu explico, antes: "A terra treme" contém de fato todos aqueles elementos que a expectativa levanta, mas no momento em que você se coloca diante da tela é como se todas as informações prévias virassem fumaça. É naquele instante de duas horas que o filme, como diz o gerente da locadora que frequento, "bate ou não bate". "A terra treme" bate, claro. A questão não é essa.

A questão é que, visto agora, neste século posterior, depois das quedas dos muros e dos mercados, o filme não tem como não adquirir outra qualidade. A qualidade da surpresa ao se notar que não se trata exatamente, como se imaginava, do registro de uma revolução - ou de uma revolta, para ficar num tom menor. Pelo menos não de uma revolta em termos comunistas clássicos, como também pressupõe a biografia de seu realizador. Não: "A terra treme" é na verdade a crônica de uma revolta absolutamente capitalista, com um grupo familiar tentando se livrar do jugo exploratório de uma cadeia econômica que os faz trabalhar muito e ganhar praticamente nada, para tentar o que atualmente se chama de "empreendimento próprio". O protagonista do filme não quer tocar fogo nos barcos e assassinar o atravessador a quem é praticamente obrigado a servir. O que ele quer é ser empresário.

E para isso, quem conhece o filme sabe, hipoteca a casa miserável onde se abriga com toda a numerosa família e arrisca-se ao máximo a pobreza que já não lhe vale muito. Tudo para fracassar no objetivo e tornar-se ainda mais miserável do que no princípio da história, como se isso fosse possível - mas, naquele cenário do sul miserável da Itália pós-II Guerra, era sim. Acontece que a miséria e falta de perspectiva naquela ilha empobrecida era de tal magnitude que nem capitalismo havia ali. E, embora o título do filme e a aura do seu realizador estimulem o espectador a imaginar que vão ver uma epopéia pró-comunismo do século passado, o que se vê mesmo é uma fracassada tentativa de instalar um arremedo qualquer de capitalismo viável. Falar em distribuição de renda naquele cenário já é um delírio - quando mais uma revolta de cunho clássico vermelho. É assim que "A terra treme" lembra, não se impressionem, o Brasil de hoje, o país possível e sonhado de um Lula, no retrato que compõem de um homem em buscar da independência econômica num cenário não revolucionário em termos clássicos. Assistir a este filme fará a antiga classe média, sobretudo seu segmento autonominado intelectual de vanguarda, a entender um pouco da nova classe média brasileira.

Aqui, nos últimos anos, a terra também tremeu, à sua maneira. Mas o movimento das placas sociais se deu de maneira positiva, com a extensão da cidadania, inclusive financeira, a gente que durante anos foi figurante da economia e da política, como os habitantes que a pobreza torna quase invisíveis no cenário neorrealista do clássico filme italiano.

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