segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Todo mundo sabe, mas é segredo (2)


A venda do escândalo da quebra de sigilo na Receita rende uma segunda postagem, a bordo de reportagem publicada nesse domingo pelo jornal “O Globo”. Pois o jornal enviou sua correspondente em Recife para um giro pelo interior pernambucano na missão de tentar descobrir se o povão simples sabe o que quer dizer “sigilo fiscal”. O tipo de reportagem de aquário, aquela decida por editores em êxtase no interior de uma sala envidraçada e à prova de qualquer contato com a realidade da vida brasileira lá fora.

A propósito, um parêntese: houve um período grande em Brasília em que as obras de reforma na plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto transformaram uma das áreas centrais da cidade – a passagem entre a Rodoviária e o Conjunto Nacional , pra quem conhece a cidade – em um caos urbano de camelôs, gente de todo tipo, trabalhadores e mendigos, desvios, carros e um sinal de trânsito permanentemente desativado. Era uma confusão infernal, a que uma amiga nossa, muito espirituosa, chamada de “Brasil”. Ali era “o Brasil”. Era assim que ela se referia àquela bagunça metropolitana. Só para concluir o parêntese, é preciso dizer que a reforma terminou e o local retomou a calma possível para a posição em que se encontra.

Pois bem: a reportagem do “Globo” de ontem sobre se o povo simples do interior pernambucano sabe o que é “sigilo fiscal” é algo assim como se alguém mandasse um repórter para “o Brasil”para fazer pergunta semelhante. Tipo da abordagem de quem divide o país em pedaços, com o povo da roça ignorante ali, o bairro de classe média melhorzinho acolá, o condomínio de luxo mais além. E é obvio que a repórter de “O Globo” já pegou o carrinho dela no Recife com as respostas ideais na cabeça. Claro que, no meio daquela gente humilde que ilustra a página do jornal, agricultores, carroceiros e feirantes por trás de suas bancas de melancia,
a ignorância formal – repare no adjetivo que estou usando aqui – resultaria em comentários toscos, noções vagas ou linguisticamente incorretas sobre o que seja “sigilo” e, mais ainda, “sigilo fiscal”. Agrava isso o fato de o conceito da reportagem – porque há visivelmente um propósito por trás disso – tentar tirar comentários ignorantes da gente que, inegavelmente, todo mundo sabe (embora nem todos se dêem ao trabalho de entender por quê) quer a eleição de Dilma e não a de Serra para a Presidência da República.

Mas o mundo é sempre mais complexo do que imagina a cabeça pequena dos jornalistas de aquário. E dá-se que, no meio das respostas toscas daquela gente simples de cidades como Casinhas, no agreste pernambucano, surgem clarões de discernimento que a autora da reportagem, naturalmente, lê de maneira propositadamente errada. Como a comerciante de 55 anos que responde:

- Sigilo é a descoberta de alguma coisa. E sigilo fiscal é a fiscalização de algo que está encoberto. Isso é coisa de campanha política, e todo mundo quer arranjar um jeito de se defender.

Outro entrevistado, lavrador aposentado de 68 anos, comenta do alto de sua sabedoria de vida, naturalmente desprezada pela reportagem que só enxerga nele a ignorância formal:

- Os políticos podem cansar de falar naquelas coisas difíceis, que é o mesmo que falar pra dentro. Pra gente, isso não conta, não.

Ou seja: por vias tortas, sem que o texto formal da reportagem admita (e aqui há ainda a boa fé de se supor que a autora tenha buscado refúgio nas entrelinhas para escapar do cerco do jornalismo de aquário), a gente simples que deveria ser usada como exemplo do brasileiro ignorante (quando não corrupto e antiético) que vai eleger Dilma presidente da República termina por denunciar, à revelia, esta própria “reportagem”. Cujo título, esteticamente atraente – “Sigilo, não sei o que é. Fiscal é o da feira” – completa o pacote. O subtítulo, abaixo, escancara o preconceito social que sustenta toda essa história materializada numa disputa eleitoral: “Tema do vazamento soa incompreensível para eleitor do interior”.
Para “O Globo”, o “eleitor do interior”, especialmente os nordestinos como os da pequena Casinhas, é analfabeto, ignorante e incapaz de entender abstrações elevadas como a noção de sigilo fiscal. Eu me pergunto: por que “O Globo” não tenta fazer, com um mínimo de honestidade intelectual, este mesmo laboratório de reportagem nas ruas do seu Rio de Janeiro original? E já arrisco uma resposta: por que os comentários, se não por ignorância presumida mas por inteligência emocional, podem soar tão destoantes do questionamento quando os daquela gente simples de que se aproveita a reportagem publicada ontem.

Vocês me perdoem a veemência do repúdio, mas é que eu me formei numa escola de jornalismo que tinha grande interesse em desbravar e conhecer o país, com a humildade que a informação precisa ter diante daquela parcela de realidade que ele não conhece tão bem. Desse ponto de vista, o interior mais distante e o grotão mais miserável eram um palco aberto para se entender o que o Brasil era e o que poderia ser. Isso foi nos anos 80. O século mudou, o país deu um salto qualitativo inegável, e aquele interior remoto – mas já nem tão remoto assim – tornou-se objeto de editorial preconceituoso disfarçado de reportagem dominical.

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