domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Cajueiro e o Parracho

Encerrado o veraneio, não pela natural mudança dos ventos mas por obra e graça de uma portaria do Ibama, o Cajueiro e o Parracho acharam por bem ter uma conversinha. Marcaram um encontro ali mesmo em Pirangi para esclarecer umas fofocas, tirar a limpo umas histórias não muito bem explicadas, acabar com um disse-me-disse que não interessa nem a um nem a outro.

O Cajueiro foi o primeiro a chegar, e já foi logo gracejando:

"E aí, Parracho, tá na crista da onda, hein?"

"Alto lá, Cajueiro. Pode ir parando de tirar onda..."

"Virou manchete de jornal, ficou assim de político, colunista social formigando, só a nata..."

"É, mas no fim das contas, quem veio mesmo foi o Ibama."

O Cajueiro notou que o amigo estava, na verdade, meio pra baixo, como se diz. E tratou de reanimar o companheiro do litoral sul.

"Fica assim, não, rapaz. Que por aqui essas providências nunca valem por muito tempo. Logo, logo alguém dá um jeitinho e no verão que vem você volta às paradas de sucesso."

"Será mesmo? O medo que eu tenho é de virar um Morro do Careca."

"Periga, não, velho. No caso do Morro, os tempos eram outros. Se fosse hoje, duvido que essa proibição de subir nele desse certo."

Parcialmente consolado, o Parracho lembrou que o Cajueiro também passou por problemas no verão que acabou de acabar. Não que estivesse muito interessado, já que não conseguia tirar da cabeça o sucesso que fizera nos últimos dias, mas por educação resolveu comentar.

"Pô, Cajueiro, sujeira o que estão querendo fazer com você também, né?"

"É, mas eu tô na minha. Só espalhando meus galhos, provocando aquela estradinha metida a besta. Quero ver alguém querer me cortar!"

"Olha, lá. Melhor não esnobar. Mas tudo bem: se o Ibama voltar pras minhas águas, fique tranquilo que mando os fiscais pra lá suas sombras."

O Cajueiro não gostou muito do comentário. Sentiu uma ponta de soberba na conversa do Parracho que, pelo jeito, estava mais deslumbrado do que parecia. E reagiu, agressivo como tem sido ultimamente:

"Peraí, ô Parracho! Tá se achando melhor do que eu só porque passou uns dias nas colunas e primeiras páginas dos jornais?"

"Ah, Cajueiro, não posso fazer nada. Qualquer um sabe que esse foi ‘o verão do Parracho’ aqui, com ou sem farofa."

"Deixa de ser metido, moleque. Tá pensando que é quem, alguma celebridade feito o Atol das Rocas? Fique sabendo que eu sou você amanhã, viu? Eu sou você amanhã!"

"Como assim, tio?"

"Eles chegam aqui, montam acampamento nos seus corais, nadam nas suas piscinas naturais, bebem, namoram, conspiram, armam, fecham candidaturas, negociam os cargos mas lá na frente, fique sabendo, lá na frente eles vão esquecer você, seu bobo."

O Cajueiro notou que estava impressionando o Parracho, fez uma pausa dramática e concluiu:

"Foi o que fizeram comigo. Era o maior cajueiro do mundo, o orgulho da terra, o ponto turístico, o prodígio da natureza, isso, aquilo, aquilo outro. E eu comendo a corda, crescendo sempre que era pra não fazer feio, esticando meus galhos pra todos os lados como quem bate no peito estufado de orgulho. E então, quando eu tô fazendo bonito nos cadernos de turismo, nos folhetos das agências de viagens, no boca-a-boca dos paulistas e goianos, acontece o quê? O quê, me diga? Uma ameaça de poda, meu, de poda! Pode?"

O Parracho, surpreso com a fúria do Cajueiro, não consegue dizer mais nada. Só olha para o amigo, que retoma:

"É por isso que eu sou pê da vida com o Morro do Careca. Um cara tão antenado, cheio de europeu por perto, todo enfeitado de cerquinha, plaquinha, vigiado por ecologista... Ninguém pode triscar um dedinho naquela areia que senão o mundo acaba. Você não ouviu falar dessa história de espigão, cara? Deu o maior rebu, uma confusão daquelas. Enquanto isso, a gente tá aqui, largado, esquecido. E o Morro nem aí pra botar uma faixa de protesto, uma lembrança qualquer sobre os dramas dos companheiros aqui do litoral sul. Parece que não tem um pingo de consciência de classe, esse Morro do Careca."

Só pra ter algo a dizer, o Parracho comenta:

"Dizem que o Morro agora só quer amizade com o Parque das Dunas. Que o resto, eu, você, essas lagoinhas aqui de perto, é um bando de desclassificado onde qualquer um chega e faz o que quer. Dizem que mandou dizer que a gente precisa se impor."

"Isso é conversa de burguesinho protegido por ONG. Queria ver o Morro do Careca e o Parque das Dunas aguentarem o tranco que a gente suporta, com ônibus lotado de turista, vendedor de pirulito, flash de máquina encandiando o tronco, menino arrancando folha, e no seu caso até farofa d’água, literalmente falando."

Neste ponto da conversa, a convergência surgiu, com o Cajueiro e o Parracho dividindo as mágoas que guardam de outros monumentos naturais. Nada muito diferente do que acontece quando amigos que andaram se estranhando se encontram no mesmo bar e, depois de provocações mútuas, terminam por dividir os ressentimentos. Para em seguida, claro, botar a culpa dos problemas da classe nos que não estão presentes.

"Beleza, Parracho. Bom te ver. E desejo que você se recupere aí nestes meses de chuva que estão vindo. Segundo semestre tem eleição e o pessoal tem muito o que fazer, vai lhe deixar em paz."

"Pois é, né? Mas é que eu também sou humano. Quer dizer, eu não sou humano mas também é da minha natureza gostar de aparecer no jornal, aquelas fotos coloridas, as lanchas, os biquínis e tal. E você, Cajueiro, como é que vai fugir da poda?"

"Minha sorte, colega, é que o veraneio uma hora acaba. E aí ninguém precisa mais ficar indo e voltando da Rota do Sol pra Natal. Eles acabam esquecendo o transtorno da estrada, do mesmo jeito como esquecem de mim e de você. Aproveito para continuar crescendo, que é da minha natureza. E eles continuam batendo boca mas sem fazer nada de concreto para me impedir, como é da natureza deles."

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

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