sábado, 6 de fevereiro de 2010

Memórias do Sopão



Severina, a Imperatriz

Hoje, ouvindo umas músicas de Cleudo Freire, aqueles hinos da juvenília natalense dos tempos em que ainda havia luais em Ponta Negra, lembrei de uma figura daquele tempo: Severina, a Imperatriz do Brasil, como ela se autodenominava.

Severina vivia no Palácio do Potengi (foto acima), naquela época ainda usado normalmente como sede do Executivo estadual. Era comum encontrá-la naquele pátio na entrada, ou na solene escadaria de madeira, ou então lá em cima, no andar superior, naquele imenso sofá em forma de curva que havia na ante-sala principal.

É que ela circulava livremente pelas dependências do Palácio. Não seria surpresa encontrar Severina em algum gabinete mais restrito. Lembro que parecia haver um acordo tácito para franquear à Imperatriz toda e qualquer dependência. Não estranhe, meu amigo. É que não havia estresse naqueles tempos. Cerimonial nenhum quebrava a cabeça por causa de Severina. Nâo havia motivos – havia, sim, um respeito por aquela figura tão desmiolada quanto inofensiva.

Severina tinha toda uma história que não cansava de contar. Difícil era entender aquela ladainha, que incluía coisas como descendência de princesas da Áustria ou qualquer outro lugar tão remoto quanto majestático. E como para confirmar – ou simplificar aquela história confusa – ela andava, sempre muito bem vestida, com a simplicidade elegante dos melhores desmiolados, envolvida por uma baita faixa, do tipo presidencial, pendendo entre o ombro e o quadril. Na faixa, salvo engano da memória que nunca é garantia de muita coisa, estava escrito aquilo mesmo: Imperatriz do Brasil.

E havia as grandes ocasiões, em que Severina era presença garantida e destaque absoluto. Ela fazia sucesso com as multidões em momentos como a posse de um novo governador. Numa dessas, acabou entrevistada meio por engano por um repórter de nossa televisão local ainda incipiente. E foi a comédia que se imagina, com Severina abrindo aquele seu discurso confuso para cima do entrevistador. Teria sido Edvan Martins a vítima da lábia de Severina? Ana Nossa Mana tem memória de elefante e pode esclarecer.

Naquele tempo havia um ritual todo final de ano no Palácio. Temo que esse ritual – muito mais absurdo do que os maiores absurdos contados por Severina – ainda seja praticado. Era um ridículo "beija-mão", quando se formava uma fila de autoridades e candidatos a importantes, todos aguardando o momento de cumprimentar o governador e desejar feliz Natal e bom ano novo. Coisa que faria corar qualquer monarquista sério. E quem se destacava? Ela, nossa mais legítima representante de regimes ritualísticos, Severina.

Onde andará Severina? Será que ainda está viva e freqüenta o museu em que transformaram o velho Potengi? Será que morreu, alguém me avisou e eu apaguei a informação da memória de propósito, só pra lembrar dela de vez em quando? Bem que o movimento negro de Natal poderia reabilitá-la como estandarte vivo – ou morto, já lá se vão uns tantos anos, não sei – do orgulho da raça. Nunca conheci um negro mais impávido e orgulhoso, no melhor sentido, do que Severina. Podia ser louca, mas parecia mais uma rainha.

P.S: Lembrei de Severina ouvindo Cleudo porque no CD dele ouvimos a voz da Imperatriz em vários momentos, como vinheta entre uma faixa e outra.

*Texto publicado originalmente na primeira versão do "Sopão" em 5 de abril de 2007. Na época, nosso amigo Alex (de Souza) me corrigiu, lembrando que Severina era a "embaixatriz" e não a "imperatriz" do Brasil, como escrevi. Também foi Alex (junto com Ricelli, em outro comentário) que revelaram o paradeiro de então de Severina. Segundo eles, ela fora internada num asilo de velhos nas Rocas que mais tarde seria interditado pela vigilância sanitária. Depois disso, não tive mais notícias. Quem tiver, é só acrescentar nos comentários: onde andará Severina?

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