quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Receba bem o seu H1N1


Nada como o turismo, uma atividade econômica que, dizem, não polui, não explora, gera emprego e ainda valoriza a natureza, além de trazer uma imagem de simpatia para as cidades que vivem dele. Mas essa santa fonte de renda tem seus subprodutos indesejáveis, como o chamado turismo sexual, a especulação imobiliária e o aumento do custo de vida, como o que se deu na capital potiguar. O que ninguém esperava, pelo menos em Natal, era que, junto com o visitante convencional – europeu, meia-idade, carente e endinheirado – viesse também para cá um tal de H1N1. Pense num turista acidental...

O fato é que ele chegou, instalou-se e aparentemente pretende ficar na cidade por uma longa temporada. Também, pudera: jamais se ouviu notícia de turista tão bem recebido. Pra começar, informados de que a viagem do H1N1 estava prevista para o início deste mês, e de que o turista acidental, embora internacional, adora uma multidão e um empurra-empurra, as autoridades turbinaram uma festa popular já programada, é verdade, mas perfeita para o ilustre visitante sentir cada grau centígrado do calor humano da cidade. Milhares de pessoas esbarrando umas nas outras, pulando felizes, respirando o mesmo ar de início de verão. Nada melhor para H1N1 se sentir em casa. Dizem que ele mal teve tempo de deixar as malas no hotel. Chegou, comprou um abadá de última hora e sumiu, invisível com ele só, no meio dos blocos.

Encerrada a festa, era preciso garantir uma hospedagem à altura do mais viajado dos nossos convidados. Não seja por isso: autoridades de saúde – corrijo-me, do turismo – do município prontamente assinaram convênios com as melhores casas do ramo para ampliar o número de leitos que H1N1 exige, como aqueles astros da música pop que nunca viajam sozinhos, levam sempre a tiracolo um punhado de tietes e uma lista de exigências para os patrocinadores atenderem. No caso de H1N1, é basicamente isso: leitos. De preferência, vips, pra combinar com a festa de recepção.

Mas não convém reclamar demais das vaidades de H1N1. Afinal, se você pensar bem, a permanência dele na cidade, ao contrário do que ocorre em outras capitais bem mais famosas deste imenso Brasil, deve nos colocar em vantagem em alguns quesitos. Se ele gostou daqui e já está praticamente fixando residência, é porque, de uma maneira ou de outra, Natal é tão ou mais cosmopolita do que vários outros amostrados centros urbanos da costa brasileira. Se quem atesta isso, com todas as letras, é um turista como o H1N1 (e suas consequências), paciência. Seria melhor que fosse alguém como... Madonna, que praticamente se mudou para o Rio? Seria, mas, além de cosmopolitas, sejamos também realistas: cada um luta com as armas de que dispõe.

Portanto, caro leitor, se você dobrar a esquina e der de cara com uma ambulância – digo, com uma besta – cheia de amigos e cicerones de H1N1 (sim, porque ele próprio cultiva alguma discrição e prefere não ser fotografo por qualquer motivo), seja educado e solícito. Aperte suas mãos, converse com eles, tussa de emoção, chore se conseguir, e não esqueça de passar as mãos nos olhos, tudo isso sem frescuras de luvinhas, máscaras cirúrgicas e beijinhos no ar. Faça contato. Só não precisa tirar os sapatos como fez aquele ministro na alfândega – até porque há formas mais gentis de contágio, digo, de acolhida.

Enfim: receba bem e cuide da melhor maneira possível do seu H1N1, que chega como aquele derradeiro convidado da ceia de Natal, para o qual nossas mães sempre guardam um presente do tipo curinga no meio dos embrulhos da temporada. Deseje votos de boas festas, não esqueça de alimentá-lo com os pratos mais nobres da data cristã, apresente-o aos tias e tias do interior, especialmente se esses começarem a conversar sobre um parente distante que teve "cêa". Só evite que ele chegue perto das crianças e das grávidas. Não que crianças e grávidas não mereçam um pouco de convivência com pessoa tão visada. É elas são particularmente impressionáveis e pode ser que H1N1 fique entediado diante de tão pouca resistência às suas mais elementares táticas de agradar pessoas. E você, como bom anfitrião, sabe que em Natal ou em Lisboa a suprema heresia em termos de receptividade é entediar o convidado.

Uma última recomendação: não deixe, de jeito nenhum, que ele leve você para a cama. Esteja ciente de que ele vai tentar, independente do clima família presente na noite de Natal. Aliás, é o que tem acontecido por onde H1N1 passa. Dizem que, neste terreno, ele só perde para aquele ator, o Zé Mayer. Todo cuidado é pouco, porque H1N1, embora travestido de gringo desorientado que chega no fim do ano, é um sujeito muito direto, do tipo pega, mata e come. Se, depois de satisfeito, ele for embora sem dar maiores satisfações, também não reclame. Porque só então poderemos relaxar e, turistas acidentais à parte, desejar feliz ano novo uns aos outros.

*Republicado do Novo Jornal

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