quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Declaração (sentimental) de princípios


Quem respira sabe que esse sentimento denominado amor é um tipo sorrateiro, múltiplo e contraditório. Sentimento malasarte, ele surpreende e trapaceia seu sujeito e seu objeto. Transforma-se, muda de aparência, oculta-se quando deveria se exibir. E também se nega a surgir poderoso no centro dos acontecimentos quanto mais o ser humano, esse seu escravo que respira, implora de joelhos para que apareça e dê algum sentido aos absurdos. O amor, esse patife disfarçado de virtude, é assim mesmo. E pode ser ainda pior quando exerce suas influências na relação entre as pessoas e o lugar onde elas vivem, viveram ou viverão.

Estou falando de um dos tipos mais subjetivos de amor, que é aquele que se pode nutrir por uma cidade. Serei mais preciso, enquanto isso é possível, pois estou falando do meu amor por Natal - um amor tão desconfiado quanto sentimentalóide e que, no entanto, não se surpreenda, pode sim, de alguma maneira, ter alguma conexão com o sentimento que você reserva para esta mesma cidade, onde circula hoje a edição inaugural deste mesmíssimo jornal. Dito isso, só me resta enumerar os lugares, momentos e circunstâncias que disparam a qualidade inquieta e esdrúxula desse amor.

Pra começar, declaro que amo, com todas as minhas forças, o epíteto de "cidade do sol" que tanto traduz quanto minimiza - e de outra maneira, também subestima - as dimensões humanas do nosso burgo. Como amo, crente de pés juntos, aquele outro ditado segundo o qual aqui "não se consagra nem se desconsagra ninguém". Acho até que o epíteto e a sentença se completam - sem que, com isso, ao contrário do que parece, sinta o menor sinal de repulsa pelo lugar em questão. Ao contrário: as duas frases juntas só me fazem amar Natal, mais e mais, numa compulsão de hospício. Porque, qual cartão de visitas involuntário, tais anunciados já lhe cortam as asas antes mesmo de seu habitante se arvorar em voos inúteis. E se, porventura e contrariamente aos prognósticos, efetivamente voar, terá que ser duplamente reconhecido.

Amo a Ladeira do Sol com o mesmo fervor apaixonado que devoto à Ladeira de Mãe Luiza. Venero os novos ares mediterrâneos de Ponta Negra com a mesma devoção que reservo ao luar dourado que ilumina as ruas anônimas do Vale do Pitimbu. Frequento a balbúrdia metropolitana da Maria Lacerda com deslumbramento idêntico ao que me toma a alma quando me vejo à sombra altiva das calçadas do Engenheiro Roberto Freire. Esquecidos ou exibidos, são cenários diversos e reais de uma mesma cidade, dona de muito mais faces do que sugere o circuito Parnamirim-Lisboa.

Choro todas as manhãs com saudades de A Modinha, mas logo recupero a esperança quando lembro que um novo e inevitavelmente defasado viaduto vem surgindo no horizonte solar que nos abençoa. Rezo fervorosamente em agracedimento à providência quando cruzo meus passos com a boçalidade mais up que é possível aos conterrâneos alcançar, e se faço isso é porque sei que por baixo de qualquer exibicionismo gritante existe, beradeiro e ansioso, um ser humano tão cabreiro quanto eu.

Festejo a eficiência dos Clowns locais tanto quanto idolatro a falta de dinheiro na banca para a tal da cultura. Morro de amores pela indigência mercantil dos artistas.
Cultuo em jejum de três dias a teimosia infantil desses mesmos artistas, amo os artistas - não tenho como não os amar, imploro a quem os detesta que tente compreender. Na sua pobreza ambulante, eles encenam involuntariamente o espetáculo de nossa decadência. Mas, que fique claro: se há algo que eu também amo, com o vigor da mais explosiva antimatéria, é a nossa decadência. O que seria de mim e de outros colegas das letras não fosse ela, essa deusa a quem tanto violentamos quanto mais ela nos conforta?

Amo a impaciência do natalense médio que buzina estridente quando eu não me oriento muito bem no estacionamento do shopping, como adoro o jeitão camarada do dono do restaurante improvisado nas sombras das árvores do Jiqui que me serve um guisado como eu jamais encontraria nos terraços da Getúlio Vargas (mas também amo os terraços da Getúlio Vargas, que não sou besta).

Amo o oitão ventilado da catedral na Deodoro, como amo a fachada e-o-vento-levou do templão da universal na Salgado Filho. Ambas são expressões do nosso gigantismo represado nos porões da religiosidade reprimida. Amo os canteiros alagados do Parque das Pedras em junho, como amo a surra de areia que a natureza nos aplica no mesmo período de uma ponta à outra da Via Costeira. São apenas duas formas que o meio ambiente tem de nos cutucar com elegância suficiente para chamar a atenção sem que a gente precise passar o recibo constrangedor de agressor da ecologia. Por falar nisso, amo de paixão os furos do saneamento – e rego esse amor todos os dias com fartas doses de nitrato envelhecido.

Amo os botecos da Tavares de Lira e arredores com como amava os ratos da Rua do Motor e adjacências. Amo o Carnatal a tal ponto que me vejo obrigado a amar o fenômeno decorrente, a que se convencionou chamar de carnatalização geral - amo, pronto, não precisa insistir, pode desligar o carro de som. Amo os fantasmas que habitam o Hotel Ducal. Movido por esse tipo febril de amor, faço oferendas aos vultos que ainda se debatem nas ruínas espirituais dos cinemas Rio Verde, a quem não me canso de amar. Todos eles, os prédios fechados, demolidos, substituídos e seus insistentes habitantes invisíveis são como salas de projeção do nosso apressado presente com data de validade vencido. Como filmes amados que envelhecem precocemente, antes de terem tido tempo de se tornar clássicos. Pelo mesmo motivo, já amo, de um amor desesperado de cometer suicídio, o Machadão que via todo dia e onde no entanto só uma vez estive. Mas amo a Copa, já que, por mais que tente, não consigo mesmo destoar da expectativa geral. Coisas do amor.

Amo Valéria Oliveira e Gilliard, Cascudo e os políticos de auditório, o turismo reluzente e o assassinato brutal na passarela, o litoral sul e o Soledade II, a Marina Badauê e os esgotos que brotam na praia, os CDs de Babau e o deslumbramento da cantora Elali. E por que não haveria de os amar, se eles formam uma cidade só? Eis a questão que explica as contradições deste amor a uma cidade. É que não dá pra separar, ir do Guairá à cidade sem ver as lojas de colchões, relembrar o lindo visual do Campus visto do Posto Planalto sem que os novos viadutos se intrometam na alumbramento. Não tem essa de joio e trigo. De um tempo para cá, as cidades se transformaram num caleidoscópio tal que vem tudo junto, deslumbramento e miséria, estupidez e contemplação. Para falar uma linguagem bem atual, ou você compra – ou não. Ame-a ou deixei-a, triste paralelo – mas que é fato. E quando me ponho diante do espelho desta cidade, vulnerável de sinceridade, vejo que a amo com todas as suas lindas e tão bem-cuidadas imperfeições.

P.S (1): Vou passar a republicar no SOPÃO as colunas que envio para o NOVO JORNAL, obviamente com atraso regulamentar, já que os textos de lá têm uma finalidade inicial que não é exatamente a do blogue daqui. O texto acima foi o primeiro da série iniciada em 17 de novembro passado, sempre nas edições das terças-feira.

P.s (2): Na foto que ilustra a postagem, Cecília, ainda mais pequenina, passeando na rua Princesa Isabel.

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