quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Rastros do futuro


Mais do que atualizar, nos anos 70, um clássico de John Ford, “Táxi Driver” antecipa padrões de violência que o mundo só conheceria no pós-11 de setembro

Grande parte da graça de rever, atualmente, “Táxi Driver”, um dos mais celebrados produtos da mente e das câmeras de Martin Scorsese, está no fato de se saber que o filme de 1976 é uma releitura do clássico “Rastros de Ódio”, de John Ford, que mostra John Wayne tentando resgatar Nathalie Wood da tribo indígena que massacrou sua família e a seqüestrou quando criança. No filme de Scorsese, vemos um semi-autista Robert de Niro tentando resgatar das ruas e dos hotéis borolentos uma Jodie Foster precocemente prostituída. Nos dois casos, emerge da aventura sombria um herói americano – falso como o nosso brasilieiríssimo Roque Santeiro. E é nisso, nessa desnudar do herói, que está a grandeza do filme.

Os tempos mudaram e, se Wayne, estrela dos westerns, já surgia na tela com a pompa do herói pronto e acabado – cuja desestruturação só se entrevia ao longo da saga de “Rastros de Ódio” – em “Táxi Driver” temos um protagonista que, de cara, já estampa suas debilidades. Ou melhor, sua falta do que quer que seja, já que a grande marca do Travis de Robert de Niro é ser um nada, criatura que não se ajusta nem no grupo de taxistas e muito menos no comitê de campanha eleitoral onde tenta se aproximar de uma funcionária burguesa. Em nenhum lugar Trevis está à vontade. Para ele, os sinais de trânsito estão sempre vermelhos. E esta falta de adequação, essa necessidade não proclamada de encontrar um encaixe na sociedade estabelecida move o protagonista e empurra o filme, como os restos de um gato atropelado que é chutado entre os pneus apressados das grandes avenidas.

“Táxi Driver” deve ter sido bem difícil de fazer, do roteiro à fotografia. Porque é um filme que, a rigor, se passa inteiro dentro da cabeça do seu torturado e confuso protagonista. De Niro, no entanto, não o interpreta com tinturas pesadas de um Marlon Brando, só pra ficar na comparação com outro grande ator do cinema mundial. Ele o faz até leve, comum e corriqueiro – faz um Travis que, por baixo da superfície de sujeito brincalhão, incorpora uma sombra viva e vazia, do tipo que passa despercebido na multidão ou no grupo de pessoas que espera o sinal abrir no cruzamento novaiorquino. Nisso, nessa invisibilidade involuntária, o personagem lembra o protagonista de um best seller que fez muito sucesso no final dos anos 80, “O Perfume”, de Patrick Süskind. Assim como o personagem do livro, o Travis do filme também se incomoda com essa falta de visibilidade – também anseia ser alguém. Mas, para isso, terá que ser notado da maneira menos recomendável – matando gente.

O resultado disso tudo é que Travis circula por uma Nova York podre e setentista, visualmente filmada em altos contrates, para dar ao espectador um pouco da visão que o próprio motorista de táxi tem do seu cenário. É um mundo saturado, perdido e impaciente. Quando Travis tenta paquerar a bilheteira do cinema pornô, ela sequer olha para ele e mal lhe dirige a palavra. Quando o funcionário do comitê de campanha reclama com um fornecedor de material de propaganda, cospe cinismo e intolerância. Mais adiante, quando passa a ser evitado pela burguesa Cybill Shepherd, Travis irá verbalizar o incômodo desde mundo que gera criaturas como ele. “Agora sei que ela é igual aos outros, fria e distante. Há muita gente assim.” Do lado de cá, o incômodo é notar que, neste final de primeiro decênio do novo milênio, mais de 30 anos depois do lançamento de “Táxi Driver’, a sentença pareça ter se reatualizado. A música de Bernard Herrman, que soa propositadamente melosa, só reforça esse desencontro entre a carência desorientada de Travis e a Nova York bruxuleantemente sinista em que ele passa as noites acordado.

Sem espaço na cidade estabelecida, com a qual ele tentou se ligar ao aproximar-se de Cybill – sendo tolerado apenas até o momento em que extrapolou o padrão de normalidade, ao convidar, autocentrado como ele só, a garota para ver um filme pornô – Travis, também sem espaço entre os colegas de volante, volta-se para o que ele mesmo chama de escória das ruas. É a prostituta mirim Jodie Foster, a quem passa a buscar, numa sanha insana de purificação pelo sangue.

É quando o paralelo entre o filme de 76 e “Rastros de Ódio” se explicita. A nova tribo indígena é o subproduto intoxicado da contracultura, com o “navajo” Harvey Keitel travestido de gigolô da “seqüestrada” Foster. A grande seqüência está chegando, com Travis de cabelo punk, explodindo de visibilidade indesejada, correndo ao hotel de quinta de armas em punho e tiros em profusão para resgatar dos novos bárbaros a garota inocente. E o que vemos é puro faroeste urbano, filmado sob um penumbra rubra, um tiroteio com tratamento hiper-realista, santos bandidos rolando escada abaixo e sátiros heróis escancarando os dentes de doentia satisfação. Se houver alguma dúvida no paralelo entre os filmes, é só ouvir os diálogos: “Eu vim salvar você”, diz Trevis à putinha. “Volte sempre, cowboy”, diz o dono da estrebaria ao xerife punk ao final da carnificina.

Mas, como um filme feito sobre outro, que empilha mito sobre mito, fazendo uma leitura dolorosa mas necessária da tal civilização americana, “Táxi Driver”, visto hoje, também explica outras síndromes das terras de Tio Sam. É impossível assistir à seqüência em que De Niro ajusta armas e correias no próprio corpo, sem camisa diante do espelho, treinando formas de sacar as pistolas, e criando pequenas engrenagens para escondê-las na roupa, é improvável que um espectador atual, vendo ou revendo esta parte do filme, não estabeleça uma conexão entre o motorista de táxi de 76 e os adolescentes que protagonizaram massacres em mais de uma escola dos EUA dos anos 90 para cá. Parece uma antevisão – um prólogo para “Elefante”, aquele estudo cinematográfico que Gus Van San fez desses episódios. Nisso, Scorsese foi premonitório, como também se adiantou, sem alarde, aos panfletos filmados do Michael Moore atual sobre a fixação dos conterrâneos pelas armas de fogo.

Esta mesma seqüência, vista hoje, bem após o 11 de setembro e o muro de Israel, também remete à triste figura do homem-bomba palestino. Travis, naqueles preparativos de põe arma aqui, esconde faca ali, bem poderia passar por um ancestral ocidental do suicida-homicida da banda árabe do mundo – no que o filme de 76 também antecipa evidências sociológicas que o tempo, os conflitos e a política americana mesmo haveriam de provocar. Neste sentido, é um filme tão bom que se credencia como visionário. E, por fim, mas não menos americano, o filme ainda comenta outra síndrome da poderosa nação do norte, que é o assassinato de celebridades da política e do mundo pop que, afinal de contas, nos dias de hoje, vai se tornando uma coisa só. Até nisso “Táxi Driver” deixa suas pistas e insinuações.

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