terça-feira, 28 de outubro de 2008

Brasilia, segundo Zé




O texto abaixo eu encontrei no Blogão do Zé, que vem a ser o Zé do Correio Braziliense, um cidadão de Taguatinga City com espirituosidade suficiente para divertir quem estiver por perto dele, na redação do jornal ou num bate papo qualquer. Enquanto o Sopão permanece interditado para obras - digo, para a mudança, que não é uma ação, mas um processo, vocês sabem - vou enganando os leitores com esses entreblogues divertidos, mas também bastante atentos. É que, para além da graça da conversa do Zé, há em todo o relato a marca de Brasília, sua rotina, sua frieza em meio a esse calorão dos últimos dias. Vale por um cartão postal, por uma reportagem deturpada da Veja sobre esta cidade (como tantas que essa publicação e tantas outras já publicaram). Com vocês, uma amostra do Blogão do Zé (p.s: o link para o site do Correio está na lista ao lado):

O PARDAL E O BAILARINO

Aconteceu na última segunda-feira, por volta das 21h, no sinal entre a 502 e a 503 Norte. O pardal, aquela câmera big brother carrasco de quem vive correndo enlouqueceu. Enlouqueceu mesmo. Começou a disparar flashes a três por dois. Estacionei meu Fiat Uno 96, o possante, e fiquei observando a reação das pessoas.
Alguns motoristas chegavam a parar o carro sem entender nada. Atordoados, olhavam para o equipamento piscando e se perguntavam: "Será que fui multado? O que foi que eu fiz?"
Aquele cruzamento da W3 Norte de Brasília se transformou numa pequena ilha de caos. A rotina havia sido quebrada. As pessoas se entreolhavam embasbacadas. A lógica urbana estava rompida por alguns instantes, enquanto o pardal maluco não parava de piscar, flashes e mais flashes. Por sorte, nenhum acidente.
O único sinal de lucidez, de que a vida continua, foi dado por um catador de papel, que passava com seu carrinho abarrotado e a cabeça com muitas doses de cachaça.
Vendo a cena: luz piscando, flashes, como um estromboscópio de boate, ele não pensou duas vezes, começou a dançar, como se ouvisse um funk, um samba, um xote, um reggae. Uma dança tonta no meio da W3 Norte. Uma dança feliz. Os motoristas olhavam a evolução do catador de papel, do bailarino urbano, e sorriam. A evolução do catador os acalmava. Ficavam menos impotentes, percebiam que a vida, atrapalhada por alguns minutos, voltava ao normal. O anjo bêbado viera avisar que era só um defeito nos fios do pardal. Um mau contato.
Agora, os funcionários públicos já podem ir para casa tranqüilos, os playboys para as academias, as dançarinas espanholas para os braços dos seus namorados, porque o bêbado catador de papel dançou a música da "razão" poética. Aquela que não se explica, aquela que simplesmente se sente.
De dentro do meu Fiat pude constatar como a rotina machuca nossas vidas. Um pardal enlouquecido conseguiu atrapalhar todos que passavam por aquele cruzamento. Transformavam-se em kafikanianas baratas tontas. "Estamos nos transformando em autômatos, meros números dentro de uma máquina de quatro rodas e dentro de repartições. Frios indivíduos cumprindo tarefas diárias. Sempre as mesmas tarefas", disse eu, de olho no retrovisor, que refletia um Zé melancólico. Um Zé amargurado por carregar uma porção de chaves no bolso, muitas que sequer abrem alguma coisa. Chaves que representam o quanto estamos presos a coisas materiais.
Obrigado, catador de papel, bailarino das ruas, sua alegria nos mostrou o caminho e que nem tudo está perdido. Obrigado, por nos revelar que a vida precisa ser celebrada até mesmo nos poucos instantes de um pardal enlouquecido.
São Rubem Braga, lá do céu, deve estar dizendo: "Tristeza, pra quê, José?
Responderei simplesmente: "É que ando apaixonado demais".


Legenda: na foto, encontrada numa peneirada rápida no Google Imagem, "o" cruzamento de Brasília, aquele que fica no início da avenida W3 Norte, separando o Setor Comercial Sul do shopping Pátio Brasil. É algo assim como o cruzamento da avenida Rio Branco em Natal, na altura da Ulisses Caldas. Ou, no caso do Recife, daquelas travessias tumultuadas ao longo de boa parte da avenida Conde da Boa Vista.

Um comentário:

Francisco Sobreira disse...

Tião,
Bom texto. Uma lição de vida de um humilde catador de papel, cheio de birita. Agora, não entendi o que você disse a respeito do seu blogue. Um abraço.