sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A Crise, II (ou "Parece que foi ontem")


Corria o distante ano de 1982 ou 83 quando o cronista Carlos Eduardo Novaes, uma espécie de Veríssimo da época – por falar nele, por onde anda Novaes? – escrevia, acho que no Jornal do Brasil – também um esquecido fenômeno da imprensa daqueles tempos – que aquela jovem tão comentada nos últimos dias – os últimos dias da época, vocês me acompanhem, por favor – na verdade não era tão garotinha assim. Ela, na verdade, já fazia parte da nossa vida há anos, pra não dizer há séculos. E, se parecia tão novidade assim, é apenas porque a imprensa – na época, ainda não se usava dizer “a mídia”, mas, quer saber?, dava no mesmo – vivia de supostas novidades.

Segure-se na cadeira porque, depois de um exasperante parágrafo todo contaminado por travessões tão incômodos quanto amostrados, vou revelar quem era essa “ela” a quem Novaes se referia. Ora, ora, ela mesma, a Crise – aquela moça que se instalou na minha casa algumas postagens atrás e que, ao fim de alguns dias de abusos, terminei reparando que era até jeitosinha. Então: o fato é que, já em 82 ou 83, Novaes anotava que a tão falada Crise não era, de fato, novidade alguma. Que, na verdade, nós brasileiros nunca havíamos deixado de conviver com ela. A diferença que é a beleza, o fascínio, o esplendor perigosíssimo da jovem havia, enfim, sido descoberto pelos jornalistas, pelos economistas, pelos políticos, pelo high society, pelo grand monde, enfim, por quem dita a moda neste país.

Lembrei do texto de Novaes ao chegar a casa ontem, depois de perder mais alguns bilhões de dólares em outro dia de choro e ranger de dentes no mercado, que é onde, vocês sabem, eu muito trabalho. Abri a porta desanimado, pronto para pedir à Crise que, por favor, me preparasse um drink pra relaxar, quando notei, quase de passagem, que a aparência da minha hóspede mudara – assim como mudam as bruxas nesses filmes de fantasia tão rentáveis e tão comuns hoje em dia no cinema. Não era mais a jovem serelepe de perninhas até interessantes de alguns dias atrás, mas uma velha de faces encovadas, cabelos ralos e grisalhos, boca murcha, dentes subtraídos e olhar de bruxa mesmo. Foi aí que percebi que a Crise, na verdade, é uma velha chata que nos atormenta há décadas, pra não dizer séculos.

Ocorre que ela havia pego a vassoura e saído para dar uma volta por aí ali por volta de 1994. Andava entediada de tanto tirar coisas do saco de maldades para nos atormentar. Resolveu conhecer melhor o mundo. Estava cansada dos brasileiros. Não era pra menos: antes disso, havia nos aporrinhado com toda aquela tormenta política que terminou no suicídio de Vargas, com a indefinição que sucedeu a renúncia de Jango e antecedeu a posse de Jango, com o golpe de 64, como o supergolpe de 68, com a inflação dos 80, com o Sarney da Nova República, com o Collor da regressão dos 90. Quando a Crise viu o topete de Itamar no horizonte da vida nacional, achou que tava demais, sentiu-se estressada e fez as malas. Foi só por isso que tivemos um break da sua presença e respiramos um pouco com as bondades do Plano Real. Mas as férias da Crise acabaram – sabe-se lá por onde esteve nessa temporada de ausência, talvez a Bósnia, os pedregulhos da Europa central, quem sabe – e ela voltou em 99, esfarinhando o nosso tão amado, forte e intelectualizado Real. Veio Lula e, como a Crise tem horror a povo e a sapo barbudo, fez as malas de novo e foi matar as saudades das ex-repúblicas soviéticas onde passara férias inesquecíveis com um namorado fortão chamado Putim. E só por isso, novamente, nós brasileiros pudemos respirar um pouco aliviados, experimentar um inédita redistribuição de renda, uma nunca vista redução das desigualdades entre as classes sociais, uma espetacular ascensão econômica de pessoas que antes nadavam nas piscinas sujas da pobreza sem perspectivas.


Mas aconteceu de Putim, completamente apaixonado por uma certa Geórgia, dar um chute no traseiro da Crise que, só por despeito, resolveu não voltar para o Brasil, mas jogar-se nos braços de um velhote rico e ranzinza chamado Tio Sam, com quem seu ex-namorado tinha uma rixa notória, histórica e ancestral. Só por isso estourou uma tal de crise imobiliária nos domínios de Tio Sam que, pelo menos nos jornais, já chegou por aqui e confirmou a velha tese que Carlos Eduardo Novaes escreveu nos mesmos jornais – embora, naqueles tempos, eles, os jornais, fossem outros – de que ela, a Crise, sempre viveu entre nós. Por hora, está de férias nos estaites, mas tem feito tantos estragos por lá que é como se daqui não tivesse saído – afinal, o que é bom lá pra cima é uma delícia aqui embaixo, como se dizia nos tempos em que Novaes era nosso Veríssimo.
Legenda: na foto que ilustra a postagem, Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer, as belas bruxas que atormentam o diabo Jack Nicholson em "As Bruxas de Eastwick", filme do australiano George Miller.

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