A conspiração das efemérides não deixa ninguém dormir em paz. Depois dos 50 anos da Bossa Nova, agora é a vez dos 20 da Constituinte. Paciência: o que seria da mídia sem a cadernetinha de datas de quem insiste em olhar para o passado enquanto o presente – esse incômodo permeado pela alta popularidade do peão Lula – insiste em contrariar o que se quer comprovar. Então, dá-lhe Ulisses, tome Sarney, engula Odete Roitman, recupere a TV Pirata que há em você e entre na dança geral da nostalgia.
Se pelo menos a Constituição em vigor, ponto de partida de toda essa dança pretérita, conseguir sair da festa com um mínimo de reconhecimento aos seus méritos, terá valido a pena. Mas, não sei se vocês lembram, ontem mesmo, ali por volta de 1999, não havia nada mais combatido, desprezado e caluniado do que esta mesmíssima Constituição.
Diziam que ela instalara um reino de fantasias – eram os direitos sociais, esse inimigo monstruoso –, falavam que ela era específica demais – nem tanto, se considerarmos que deixou 200 e tantos pontos a serem definidos em legislação complementar, incluindo um delicadíssimo ordenamento do sistema de comunicações no país, tema, nem preciso dizer, jamais retomado, por contrariar vocês-sabem-quem.
Mas, para além da discussão necessária que pode, de alguma maneira, limpar um pouco a imagem da Carta de 1988, vem, numa segunda onda do noticiário, toda a recuperação tipo You Tube das coisas daquele tempo. Depois de ler tudo – as referências ao mistério da novela "Vale Tudo", ao sucesso do rock Brasil e a tudo o mais que enche divertidos e rentáveis almanaques nas livrarias – a gente fica com uma sensação de empastelamento memorial.
Pra mim, particularmente, 1988 foi um ano muito interessante. Em meio ao empastelamento, consigo divisar certas coisas – embora a qualidade turva da lembrança possa cometer equívocos calendários. Feita a ressalva, acho que era a época em que o jornalista Alfredo Lobo assumiu a direção da redação da Tribuna do Norte, instalando um projeto que estimulava todos que lá estavam a produzir um jornalismo minimamente criativo. Foi o tempo em que passei a morar no Parque das Pedras, esse logradouro que para mim e para tantas outras pessoas tornou-se um endereço sentimental e uma referência de juventude para todo o sempre. Havia o hábito de ler as revistas semanais, a "Veja" de então, que era completamente diferente dessa de hoje em dia. Havia o videocassete que a gente usava até o limite do suportável, havia a locadora de Bal no Posto Planalto, NÃO havia aquela pista de alta velocidade com elevado que encobriu aquela bela paisagem que era a entrada do Campus da UFRN bem em frente ao referido posto. Havia até o Cine Nordeste, onde se exibia "O Último Imperador", e o Rio Grande, onde se podia assistir a "Fulaninha", enquanto a canção-tema cantada por Paulinho da Viola disputava espaço com o som do trânsito lá fora, da avenida Deodoro, porque a sala tinha buracos de cobogós.
Só que, se a memória tenta fundir esses recortes isolados e relacioná-los com o evento nacional que era a formulação da nova Constituição, o que vem à superfície subjetiva da mente é uma nuvem esparsa de um tempo e lugar. Brasil, 1988: como mudou o brasileiro – e tantas vezes, para pior – de lá para cá. E como é difícil tentar recuperar o que fomos e mostrar um pouco para os obsessivos do presente na tentativa de fazê-los melhores do que são.
Nas brumas da Constituinte, éramos, é verdade, mais inocentes. Acreditávamos mais, participávamos com ansiedade, só víamos os obstáculos que queríamos ver. Ainda não havíamos nos diplomado neste niilismo obeso que nos engorda de facilidades e nos satura de egocentrismo.
Um dia, nos século seguinte, as brumas começaram a se dissolver, e gente que caminhava lado a lado sem problemas começou a se irritar com a cara do cara ao lado. Ensaio sobre a cegueira às avessas. O sol global banhou tudo com um brilho fascinante e desde então ficamos míopes de outro tipo de cidadania, de estar no mundo.
Pena que a efeméride tão útil para encher páginas de revistas e cadernos de jornais não sirva para estender a reflexão até essas curvas de estradas embaçadas. Seria imprecisão demais – e os dias de hoje não têm tempo para abrir mão da objetividade que tudo vê e tudo quer.
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