quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Lá se vai Brogodó



Ligue a tevê e veja os atores se despedindo entre si e dos seus personagens – para não dizer do próprio público – enquanto vai sumindo do ar o artesanato industrial da melhor teledramaturgia dos últimos anos

Cordel Encantado, a novela, parece transferir para o campo da ficção aquela máxima da biologia segundo a qual na natureza nada se cria e tudo se transforma. Desde a sua surpreendente aparição nos finais de tardes e inícios de noites da televisão, esta dramaturgia que vem comprovando o quanto o popular pode ser sofisticado sem soar esnobe. Operação que realiza valendo-se de um punhado de arquétipos dos mais batidos que vão dos ícones da cultura ibero-brasileira fundidos na estética do cordel até os símbolos dos contos de fadas mais manjados.

Na enciclopédia de entretenimento com uma boa mão de pintura cultural que tem sido essa novela, começamos com a figura recorrente e mundializada dos reinados distantes em fusão com a não menos ancestral, mas brasileiríssima, iconografia dramática do cangaço nordestino. Do casamento absolutamente lúdico do reinado imaginário das Seráfias com o bando do capitão Herculano nasceu o tecido inicial dessa história, movido pela busca de uma princesa prometida – e dada como perdida. Nada mais gasto, e no entanto, nada mais instigante segundo a maneira como a novela manuseou esses temas e por meio deles se deixou ser conduzida.

No entrecho, tivemos diversas outras citações de situações clássicas das formas narrativas mais cultivadas pelo bicho homem: a Doralice-Diadorim que intrigou o filho do cangaceiro; o homem da máscara de ferro na figura de Petrus; o homem de mil disfarces que se revelou Belarmino; a jornalista que reedita e recompõe a saga do cinegrafista que gravou imagens do bando de Lampião; a reencarnação de Antonio Conselheiro na pele do profeta de Miguelzim-Nachetergaele; o Seu Quequé da literatura brasileira mais uma vez às voltas com três casamentos; a Maria Cesária da culinária mágica similar à do filme Como Água para Chocolate; inúmeras outras pequenas alusões espalhadas ao longo dos capítulos até o beijo de Cinderela que despertou a heroína Açucena – e ainda faltam uns dias para o desfecho da história, o que abre espaço para novas recriações.



O Cordel é um daqueles casos de novela de televisão que dão uma nova qualificação ao gênero tão desprezado – muitas e muitas vezes não sem razão. É como foi Roque Santeiro em meados dos anos 80: aquele caso feliz em que tudo parece funcionar ao ponto da perfeição, atores justinhos nos seus papeis, ganchos nos cascos, fios narrativos principais e acessórios muito bem sintonizados, desempenhos, cenografia, abordagem, trilha sonora, direção de arte desenvolvidas com esmero. Este último foi um quesito à parte: se por um acidente imaginário digno do que tem sido essa novela sumissem de um determinado capítulo todos os personagens, intrigas, diálogos e sons e restassem apenas os fundos das cenas – interiores e exteriores, adereços visuais como os muitos que compõem aquele acampamento dos cangaceiros, pra ficar num exemplo só de tantos – mesmo assim a novela já se bastaria por um dia que fosse de tão bonita, simplesmente assim, bela como uma renda nordestina feita no capricho que ela exatamente é. Nunca uma direção de arte de um programa de televisão foi tão feliz – e o sinal em alta definição tem um apuro especial em lamber, visualmente lamber como dizem que faz a câmera de cinema, cada detalhe dessa direção.

Foi tão divertido, interessante e contemplativamente válido assistir ao Cordel Encantado que ficamos todos, seus admiradores, vivendo da vã ilusão de que esse seria um daqueles casos de programa de televisão que jamais acabaria. Ou então de que, de tão boa que tem sido, nada mais poderíamos esperar de sua reta final, essa que se dá na semana que transcorre agora. Qual nada: os derradeiros capítulos do Cordel, muito antes do último, têm surgido na tela como uma antecipação do mais aguardado – no sentido de esperado e não de desejado, por ser o final. Os nós da dramaturgia vão sendo desatados e temos o privilégio, em casa, de assistir a um fenômeno raro até na teledramaturgia de alta qualidade feita pelo império global: os atores se despedindo dos seus colegas em cena. Sim, numa metalinguagem que nada tem de teoricamente soberba e hermética, mas tudo tem da mais genuína emoção que uma obra de arte – Cordel, perdoem-me os apocalípticos, é uma obra de arte como dificilmente o homem, ou um coletivo de homens, é capaz de fazer – é capaz de transmitir. Nos emocionamos juntos com intérpretes e personagens que, ao se despedir em cenas da ficção, claramente também o estão fazendo no plano dos bastidores.



E isso tem se dado em grosso, se a gente lembrar que num mesmo e único capítulo – um desses da reta final – vimos o menino Eronildes dar adeus à casa do padre que o criou, numa cena que juntou um ator maduro e uma criança precoce em um abraço de atuação que nem todo teatro terá sido capaz de realizar – sem prejuízo para o teatro, lógico, mas sem desprezar os poderes da novela. Essa cena, no entanto, seria superada logo a seguir, com a despedida do cangaceiro-ator Belarmino do seu capitão Herculano, em mais um momento que transcendeu a pura ficção. Ali estavam dois atores tarimbados deixando para trás o trabalho de interação dramática que realizaram juntos durante meses – sintomaticamente, dois estreantes em novela de tevê, Domingos Montagner e João Miguel, que tiveram a felicidade de se apresentar neste formado dentro da moldura encantada desse eletrônico e artesanal Cordel.

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