quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Mamute, o filme



Gael García Bernal é um jovem que ganhou dinheiro e se estabeleceu na vida ao construir uma espécie de rede social de jogos. Michele Williams, com quem é casado e tem uma filha, é a médica plantonista que faz cirurgias de última hora no hospital onde vão parar as vítimas do mundo cão do qual ela se protege quando descansa, embora insone, no belo apartamento onde vive com a família e a babá filipina. Um dia, Gael precisa viajar ao sudeste asiático apenas para assinar um contrato. Este é o impulso dramático inicial de um desses filmes que costumam passar completamente em branco na grade de programação dos canais pagos. Ao assisti-lo, intrigado, até o final, termino me perguntando: não será este o tipo de filme que a indústria do cinema, embora realize, uma vez finalizado tende a perceber o alcance de sua ambição e o despeja num nicho onde não despertará maiores curiosidades?

O desprezo com que o filme é embalado, no caso do mercado brasileiro, começa pelo título nacional: Corações em Conflito (direção de Lukas Moodysson). Nada menos sugestivo e mais gasto – nada menos correspondente ao que vemos ao longo de sua exibição. O título original, além de marcante, é muito mais fiel na metáfora que contém: Mammoth. Tivesse diso apenas traduzido pura e simplesmente pra Mamute, o filme já começaria a escapar da pausterização geral da programação; além de remeter ao contexto em que o valor comercial dos restos desse animal pré-histórico é citado. Desconfio ainda que é o tipo do filme que nem chegou aos cinemas – posso ter passado batido e não reparado, admito – de tão desencontrado está do que esperam as atuais platéias, e onde resta muito pouco espaço entre um Lanterna Verde e um Capitão América.

O fato é que este Mamuth, em exibição do canal Telecine Pipoca (!), faz a partir daquele plot simples descrito no primeiro parágrafo da postagem um estudo sobre as ansiedades do mundo atual como raramente se vê. Lembra muito uma direção do mexicano Alejandro González Iñarritu, embora soe menos agressivo visualmente. Mas, descontado o caráter menos desagradável das imagens, não o despreze porque, de fato, não é menos incisivo. Talvez desça mais fácil – e só.

O panorama resultante é mais ou menos este: o jovem empresário, transladado de lugar e de realidade, passa a enxergar as inutilidades que o seu mundo original está a espalhar pelo mundo restante, por mais diverso que seja se estamos falando do contraste entre a vida escalonada de uma grande cidade americana e a escaldante calma dos litorais asiáticos. A esposa entra em crise ao perceber, simultaneamente, que não pode garantir a vida de uma criança agredida pelos próprios pais tanto quanto não consegue manter uma comunicação com a própria filha que, por sua vez, só tem olhos para a babá filipina que, para ter renda capaz de garantir o futuro dos filhos vive longe deles sem chances de retorno.

É mais que um caso de duplo desamparo materno (ou triplo, como se vê mais à frente no filme) – é um sintoma coletivo de tudo o que vai mal no mundo atual e da busca feita por multidões dispersas e desorientadas de encontrar um novo rumo diferente do padrão de vida humano meramente fabril e economicamente produtivo que, com esta ou aquela variação, vai tomando conta de todos os continentes. Claro que os fatos desencadeados no filme vão empurrando essas angústias para as resoluções possíveis, de maneira que a babá, por exemplo, é forçada a repensar o que seria aquele futuro idealizado que deseja garantir aos filhos – aquele progresso tipo um ponto zero que só agora começamos, na ficção e na realidade, a relativizar.

E se o post está tropegamente soando filosófico demais e metafísico de muletas, é apenas porque o filme em questão assim pede. Um filme, como se vê, pouco recomendável à parcela – grande parcela, infelizmente – do público que confunde a bonança material dos dias que correm com qualquer tipo de realização. Um filme inconveniente, talvez mais do que aquele outro em que o americano derrotado na eleição presidencial tenta chamar atenção para o meio ambiente. Aqui, a ecologia humana já é o bastante para nos tirar o sono, caso a gente insista em viver como quem trabalha, come e dorme de olhos fechados.

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