terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sobre o "filme do Lula"


Além de servir como saco de pancadas para quem tem preconceito contra operário que vira presidente da República, o “filme do Lula”, em cartaz desde o dia primeiro do ano, tem várias outras utilidades: denunciar, involuntariamente, o oportunismo do Barretão (o produtor, Luiz Carlos Barreto, se é que alguém aí não liga o nome à pessoa); mitificar Luiz Inácio em vida; eleger Dilma contra Serra; puxar o saco de quem está eventualmente no poder; faturar uma grana na bilheteria apelando para o choro fácil de um melodrama infalível; fazer média com o brasileiro médio que sonha em “subir na vida” como fez o presidente. A lista é infinita e, daqui até a eleição presidencial, várias outras utilidades serão denunciadas bravamente por críticos de cinema, analistas políticos, especialistas em semiótica e por aí afora.

Assisti ao filme no dia da estréia, uma data praticamente morta aqui em Brasília, numa sessão vespertina de poucos espectadores, mas grande parte deles de cabelos brancos, como eu mesmo estou ficando ano-novo após ano-novo. E, deglutidas e processadas todas as informações prévias que o filme levantou desde que se anunciou que seria feito até aquela estréia para convidados realizada também aqui em Brasília, entrei na sala até pronto para sair meio decepcionado – que filme muito falado, se sabe, tem grande possibilidade de desapontar. De qualquer maneira, tentei abstrair tudo assim que as luzes se apagaram.

Quando as luzes novamente se acenderam, ao final da exibição, concluí que: 1) O “filme do Lula” desce fácil e passa rápido, numa narrativa que obrigatoriamente deixa de fora inúmeros outros fatos importantes de uma biografia maior; 2) O “filme do Lula” realmente não se detém em mostrar as ambiguidades de um homem torturado pelos fatos; antes, prefere deliberadamente exibir a dimensão achatada de alguém que enfrentou tantos obstáculos e chegou lá, naquele lugar inacessível para a imensa maioria do meio majoritário que o gerou; e faz isso mostrando um Lula quase sempre sorridente diante do rosto de uma realidade que quer vê-lo praguejar o tempo inteiro; 3) O grande mérito do filme pode não estar na ilustração da trajetória em si, na loa da ascenção contra todas as possibilidades, no lustre de realidade que impregna cenários, cenas e locações, nem mesmo no típico gancho de roteirista que é a ligação quase metafísica entre mãe e filho; o grande mérito do filme, abstraído todo o debate (tanto o legítimo como o ilegítimo) em torno dele, pode estar no fato de mostrar não o crescimento de um brasileiro pinçado da massa para a cadeira do poder, mas sim o momento crucial deste mesmo brasileiro indefeso enfrentando o Estado policial que ainda éramos na passagem dos anos 70 para a década de 80.

É ali, no comando da greve, na claustrofobia do sindicato cercado ou na amplidão humana da cena do discurso no estádio de futebol, que a gente está pronto para entender este Lula. É ali que o filme se faz válido, quando vemos o líder operário comum à frente de uma investida que ameaça uma estrutura política das mais incomuns e perigosas – a ditadura brasileira de então. Naquele momento, Lula não tinha a proteção presidenciável de que goza hoje, não tinha sequer a segurança simbólica que garante, por exemplo, os atos de um líder de partido político que ele também se tornaria. Não tinha a imunidade do deputado que também seria, nem mesmo o cordão de proteção informal que mantém a integridade do candidato à presidência da República que ele seria por tantas vezes. Lula estava à frente de uma multidão de operários, mas nunca esteve tão só. Talvez nem mesmo a célebre "solidão do Alvorada" se compare à matéria específica daquela solidão.

O que o “filme do Lula” mostra, oportunismo e intenções à parte é que, no enfrentamento de empresários mimados pelo protecionismo e, por tabela, do sistema vigente no país naquele momento, Lula se arriscou e se burilou. Passou a coragem pessoal no torno mecânico do momento político. E, tendo se mostrado vencedor nos limites desta mesma realidade, credenciou-se para sempre a estar onde, afinal, chegou. Afinal, o que é uma crise moral como a do "mensalão", ou uma topada circunstancial como a dos "aloprados", quando comparados ao abismo sem mureta de proteção que era aquele instante crucial das greves no ABC paulista nos anos de chumbo?

Talvez por isso o “filme do Lula” tenha um tom de parábola, o que o aproxima de uma narrativa bíblica e o reveste de uma cor mitológica. Mas provavelmente seja apenas um conto sobre a coragem que uma pessoa comum precisa ter para fazer algo que se espera dela em circunstâncias extraordinárias. Enfim, isso que acontece com todo brasileiro, todo dia, aqui, ali, ao nosso lado, na cidade, na periferia ou no campo. A reinvenção inevitável que todos nós praticamos tão automaticamente que ninguém se dá conta, mas que, no fundo, garante a sobrevivência de cada pessoa e de um país em formação. A diferença, com Lula, é que ele fez isso dentro da moldura de um lugar e de um momento no qual todos estavam de olho: a reconstrução da democracia no Brasil.

Um comentário:

Francisco Sobreira disse...

Tião,
Desde que esse filme foi anunciado, não levei nele a menor fé, por ter sido produzido pelo Barretão (e pensar que ele foi um nome destacado no Cinema Novo, como diretor de fotografia)e dirigido por um de seus filhos, que não merece confiança (aliás, os dois não merecem confiança). E, depois, digam o que disserem os petistas, não há dúvida de que é um filme para funcionar como suporte para a campanha da Dilma. Acho que só a velhinha de Taubaté acreditaria que o filme não tenha essa intenção, estreando em ano de eleição. Mas você tem razão. Qualquer outro presidente, que tem a popularidade de Lula, atrairia o oportunismo do Barretão. Um abraço.