terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Lobo noturno em luz de neon


Existem filmes que dão um trabalho danado pra gente entender por que tanto gosta deles. Mais do que isso, dá um certo temor buscar essa explicação. Porque parece que, uma vez entendido os meandros da mágica que neles se processa, nunca mais serão tais filmes objetos daquela admiração burra e jamais analisada que foram antes. Toda vez que eu pego o DVD com "Paris, Texas" para rever, corro este risco. Esta semana, não resisti e aproximei-me do perigo mais uma vez. Felizmente um cansaço de volta às atividades de início de ano comprometeu grande parte do que seria o processo de análise acurada do filme e o manteve, terminada a exibição, intocado naquele lugar cercado de brumas subjetivas onde a gente guarda tais tesouros. Quero dizer: não consegui achar as chaves que destrancam os segredos e deixam à mostra os mecanismos do fascínio que "Paris, Texas" exerce sobre mim (talvez sobre você que me lê também, daí tamanho falatório), embora tenha recolhido umas pistas - talvez, falsas - pelo caminho.

Notei, por exemplo, uma tentativa de expor em geografia humana os dilemas de viver nos domínios da América com "a" maiúsculo. Vocês sabem: o filme, vencedor da Palma de Ouro de 1984, foi feito pelo alemão Wim Wenders nos desertos americanos, entre Los Angeles e Houston, numa paisagem que parece ressurreição desesperada do Monument Valley que ilustrava os westerns de John Ford. Assim, sem reler nada sobre o filme (sobre o qual há vastos textos, um deles em livro), fiquei com a impressão de estar vendo um cineasta estudar dois tipos marcantes do cenário americano que tanto o fascinava.

Um deles, o acessório (segundo a ótica do filme) é o self made man, o bem-sucedido trabalhador que "make money", o tipo médio meio autista que segue em frente sem dar bola para angústias e, de jeans e cigarro no bico, ajusta-se à terra das possibilidades. Não por acaso (isso é um chute, mas arrisco) chama-se Walt (Disney?). Na tela, é o Dean Stockwell que dá duro com sua empresa de (não por acaso, novamente?) montagem de out-doors, quando não está às voltas com as trapalhadas em que o irmão, Travis, se mete. O outro tipo é justamente este Travis perdido nas consequências de uma crise pessoal envolvendo amor, desejo e ciúme obsessivos. É dispensável relembrar a história contada. O fundamental é que, na geografia áspera mas cheia de possibilidades da grande América, Walt é um cowboy ajustado que toca a manada, quer dizer, a vida; enquanto Travis é o lobo noturno sempre banhado por luzes de neon que não encontra pouso certo entre motéis e viadutos. No nível da metáfora, o filme me pareceu uma ampla e sedutora ilustração deste caminho que se bifurca na encruzilhada de uma nova civilização.

E ainda tem Nastassja Kinski, loura e linda com aquele a esta altura inconográfico vestido roxo, na posição de pivô desse desajuste em fragmentação. De maneira que "Paris, Texas" continua sendo pra mim um grande filme, justamente porque sigo incapaz de saber exatamente o que o faz ser assim. Só tenho pistas e elas me bastam.

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