quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A lenda do cajueiro e da estrada


De tempos em tempos, as cidades e seus moradores ganham de presente uma novidade inesperada que coloca em cheque os valores da própria comunidade. Pode ser um buraco de rua que adquire dimensões inoportunas, a proposta de demolição de um casarão centenário para dar lugar a um apart-hotel de ocasião, ou uma ressaca marítima que lava as ruas da orla como há muito não se via ou se imaginava. Neste exato momento, os moradores de Natal (os de fato e os de direito, como julgo ser o meu caso) estão diante de um desses fatos inesperados - e definidores da alma de uma cidade. Estou falando, se é que você ainda não adivinhou, dessa polêmica em torno do crescimento do cajueiro de Pirangi, o maior do mundo, e suas consequências para o trânsito de quem passa o verão nas praias do litoral sul.

Pra começar, há um componente de estravagãncia, qualquer coisa de deslocado que faz desse fato - o crescimento antes desejado e agora nem tanto de uma árvore anômala - uma espécie de teatro do absurdo encenado em via pública, debaixo de um sol de rachar. O cajueiro, que sempre foi motivo de orgulho, agora é um incômodo. Para quem frequenta o blogue mas não a cidade, esclareço, em tempo: além de já ser o mais exemplar da espécie no mundo (segundo o livro dos recordes, sempre citado), o cajueiro de Pirangi, já no município de Parnamirim, colado a Natal, é também uma árvore em constante crescimento. Ou seja, não satisfeito em já chamar a atenção de meio mundo, continua avançando seus galhos e ramos para os lados (a característica de sua anomalia é essa, a de crescer não para o alto, mas lateralmente) totalmente indiferente a quem esteja pela frente. E quem está pela frente? A estrada que leva não só a Pirangi, onde está o cajueiro, mas a uma infinidade de outras praias litoral sul adentro.

Daí a polêmica: poda-se o cajueiro para preservar a estrada ou muda-se a estrada de lugar para preservar o cajueiro? Parece simples? Não é o que indicam toneladas de artigos em jornais de Natal, pilhas de especialistas de ambos os lados - os ecologistas e os pragmáticos, só pra tentar simplificar um pouco - e sobretudo a também mui criticada indefinição do poder público diante do problema. O fato é que a polêmica do cajueiro tem um caráter tão, digamos assim, literário, que chega a parecer mais ficção do que realidade. Lembra um pouco aquele texto famoso de Ibsen, "Um Inimigo Público", que mostra o inferno em que se transforma a vida de um cidadão que denuncia a contaminação das águas de uma cidade que vive justamente do turismo aquático. Por outra via, sugere aquele clássica imagem do teatro do absurdo, que é a peça onde se entroniza um elefante em cena aberta, como que para despertar o público do torpor habitual.

Eis a imagem: um cajueiro em crescimento a olhos vistos, como sob a visão de uma câmara em rotação acelerada, espandindo-se da costa de Pirangi rumo a Nova Parnamirim, dali até Ponta Negra, daqui a pouco os galhos insaciáveis escalando qual uma aranha verde o Morro do Careca, logo tingido de folhas cheirosas o asfalto da avenida Engenheiro Roberto Freire, para minutos depois encobrir de bulbos e castanhas o Machadão e o Machadinho. E assim por diante, até desaguar suas galhas nos mangues de Santos Reis, não sem antes lançar um ramal por baixo da ponte até as hostes da Redinha, para o gáudio de galeras nem tão ecológicas assim.

Não tenho resposta nem palpite para o dilema do cajueiro, como bem pode indicar a fantasia antifuturista do parágrafo anterior. Já me dou por safisfeito só com a qualidade do debate que ele, o dilema, implanta bem na entrada da Rota do Sol, suficiente bem mais do que para dar uma cara à estação neste 2010 ainda principiante, como também para fazer a cidade e sua região metropolitana se pensar e se repensar. Agora, quanto ao que, no final das contas, vai ser feito - aí é cada macaco no seu galho para sofrer as consequências, já que o histórico recente das decisões municipais, ao menos na seara estritamente natalina (ops, natalense) não tem sido dos mais estimulantes, ainda que sob os auspícios de um mandato verde. Ou por isso mesmo, se o eleitor tomar o adjetivo em mais de um sentido.

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