quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Seu Tarantino e seus bastardos


A bem da verdade, não sei se investi mais tempo lendo textos e mais textos sobre "Bastardos Inglórios", o novo e celebradíssimo Tarantino, ou assistindo ao filme propriamente dito. A prosopopéia antecipatória dos filmes hoje em dia é um negócio de tal magnitude que o pobre espectador ansioso, coitado, já entra na sala do cinema desconfiado, olhando para os lados, como se estivesse ingressando num lugar para interrogatórios policiais, igualmente escuro, povoado por sombras suspeitas, de onde ele só sairá depois de admitir, um "sim" após o outro, que o filme exibido confirmou uma após outra cada uma das sentenças que os mil escribas dos jornais, revista e internet cometeram empolgados antes do lançamento.

É claro que o indigitado espectador não é obrigado a ler o catatau de comentários, críticas, reportagens, avaliações, oba-obas que antecedem o dito lançamento. Mas quem respira sabe que hoje em dia é impossível ficar indiferente ao cobertor multimídia que cerca a vida humana, tanto quanto é impossível a uma pessoa que esquia no gelo fazer de conta que não está vendo a avalanche iminente. De maneira que não resta alternativa a não ser se arriscar, comprar o ingresso com cuidado para não ser espionado, entrar na sala sorrateiramente, escolher um lugar pouco visado, fechar - digo, abrir - os olhos e, seja o que Deus quiser. Se você olhar de relance, discretamente para não ser visto, vai notar, como eu percebi, que a sala de cinema está cheia de pessoas que normalmente não passariam por ali: uma platéia múltipla, que vai de adolescentes a pessoas de meia idade, casais, solteiros, barulhentos e silenciosos, todo tipo de gente, como se fosse a família inteira diante da televisão na final da Copa do mundo. Tarantino tem esse poder, de atrair a média do público com há muito não se via - desde os primeiros Spielberg, acho.

Mas não divague muito, porque o perigo pode estar na poltrona ao lado - um daqueles críticos que consideram Tarantino - talvez justamente, mas não é esta a questão - a mais perfeita tradução da época atual, porque ele sabe como ninguém conjugar em imagens os restos simbólicos que as épocas passadas deixaram, e quanto mais vulgar for essa herança, tanto melhor. Se não for absolutamente pop, não serve para estar vivo. Olhaí a divagação lhe traindo de novo: se continuar assim, ao final da sessão você não vai conseguir, por mais altos que sejam os gritos de quem lhe interroga, admitir que gostou do filme, que é realmente uma obra-prima da história do cinema e por aí afora. Portanto, aprume-se, comporte-se, alinhe-se com as novas diretrizes da cultura atual.

Ou por outra, relaxe. Porque ali pelos dez primeiros minutos de projeção, você já viu tudo: vai ser moleza passar no interrogatório. "Bastardos Inglórios" é tudo aquilo que os especialistas disseram, apenas com um pouco menos de empolgação. Se não, vira empulhação. É divertido, tenso, paródico e sério ao mesmo tempo, dependendo do momento - e é esta mistura e a imprevisibilidade com que ela é feita que confere sabor ao filme. A trilha sonora desta vez é explicitamente referente, mas eu fico pensando é se grande parte da platéia não está apreciando aquilo pelo fato de estar vendo e ouvindo tais ilustrações pela primeira vez - pela idade de grande parte dela, não há como ter visto "Era uma vez no Oeste", "Por um punhado de dólares" e outros títulos num cimema de verdade (em VHS e DVD, sim, mas o impacto é completamente menor). Então, o que parece satisfação intelectualmente superior de ver citações inteligentes pode ser na verdade o deslumbramento da primeira vez - não é coisa menor, que fique claro, mas é preciso colocar cada coisa em seu lugar.

Hum, tem um moço de costeletas anos setenta e brinco na ponta do nariz olhando atravessado pra mim enquanto eu faço essas considerações mentais. Achei que não estava dando a menor bandeira. Melhor eu relaxar de novo. O que não é difícil, é fácil como tirar bala soft de menino do seriado Anos Incríveis. Porque Tarantino nos dá um banho de nostalgia pop - sim, por que não? de novo não é esta a questão - que leva a gente de volta para o velho cinema poeira do interior, num tempo em que o ingresso não custava 18 pratas, nem se precisava devorar sacos e sacos de pipoca pagos pelos olhos da cara - não, a gente prezava pelos olhos, que eram essenciais para ver aquele delicioso lixo de matinês, com duelos, assobios e supercloses. "Bastardos Inglorios", se é que você ainda não viu ou não leu, deixa a gente à vontade para vestir calças curtas mesmo tendo grande parte dos cabelos brancos; nos libera sem censura para fruir daquilo que chamamos de "filmes" - algo mais amplo do que o que chamamos "cinema". Porque a segunda palavra vem com uma acepção que comporta um exercício artístico ambicioso (e necessário), enquanto a primeira é uma sala maior, onde cabem todos os gêneros, com direito a sobrevida em forma de seriados televisivos e figurinhas para colar no álbum.

Acho que com essa última desculpa vou me safar do interrogatório. Qualquer coisa, peço para dar uma olhadinha na sala de projeção - um velho sonho, jamais realizado. Sei que não vai ser como aquela que aparece no próprio filme, tampouco será como a do velho, saudoso e querido cine Rex da minha cidade primeira. Certamente será um lugar high-tec e digitalizado, sem poeirinha pelos cantos e ratos circulando à vontade, mas ainda assim seria a melhor maneira de encerrar a sessão de um filme como "Bastardo Inglorios". Pensando bem, além de ser uma bela jogada de marketing, seria um atrativo a mais para o público: oferecer, ao final de todas as sessões, uma visitinha à sala de projeção. Moderno ou antigo, lugar bem apropriado para aquele interrogatoriozinho do qual ninguém escapa hoje dia quando abre a boca para dizer que está pensando em ir ao cinema.

Portanto, depois não diga que não avisei: todo cuidado é pouco com seu Tarantino e os filhos bastardos que ele espalha por aí, em cinemas, bares e redações.

Um comentário:

Francisco Sobreira disse...

Tião,
Muito boa essa maneira de situar um filme que está na boca de críticos, cinéfilos e dos que vão ao cinema para se distrair. Não o vi,porque (acho que já lhe disse)tomei a decisão de não ver mais filme em shopoing. Vou aguardar o lançamento em DVD. Agora, Tarantino é há muito tempo o queridinho da crítica, ou, de grande parte dela. Dele gosto um bocado de Jackie Brown e, um pouco menos, de "Pulp Fiction". Um abraço.