quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Lições de Brasília para Natal

“Cristovam, a História lhe fará justiça.” Essa frase, estampada em adesivos, apareceu colada em carros e ganhou as quadras, escolas e outros ambientes públicos do Distrito Federal quando, em 1999, o então governador Cristovam Buarque, ainda no PT, disputou e perdeu a reeleição para Joaquim Roriz – um político às antigas que dispensa apresentação para quem não mora em Brasília. Neste momento em que o eleitorado mais esclarecido, atento e consciente de Natal tenta digerir o resultado da eleição municipal, a frase emblemática, aquela outra derrota e as lições que ela proporcionaria me vieram à mente. A comparação pode ser muito útil para todos nós que, ainda perplexos, tentamos enxergar algum rumo e divisar alguma esperança para além dos próximos quatro anos.

Cristovam Buarque era um governador muitíssimo bem avaliado, assim como é o prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves. Só que Cristovam era mais ainda: havia se tornado uma referência no país com sua gestão à frente do Distrito Federal, implantando pela primeira vez em grande escala o programa Bolsa Escola – tucanos do interior de São Paulo eram os pioneiros na experiência mas ainda em escala municipal. A saúde pública no DF também havia se tornado destaque nacional com uma inversão simples feita pelo governo Cristovam: a adoção do médico da família, com o programa Saúde em Casa, que fazia medicina preventiva, indo à moradia das pessoas, no que se desafogava o já então frágil sistema público de saúde da capital do país, desde sempre prejudicado pelo fato de também ter de dar conta da população do chamado Entorno de Brasilia, um conjunto de cidades implantadas ao Deus dará que manda todos os seus doentes para as cidades satélites do Plano Piloto.

Em resumo, a marca do governo Cristovam, por esses e outros programas foi a inversão do que o político tradicional sempre faz: nada de grandes obras do tipo viadutos e novas avenidas; prioridade, sim, para programas sociais, que proporcionavam distribuição de renda (a Bolsa Escola é o grande precursor da Bolsa Família), apostavam firmemente na educação (o que também se conseguia por meio do Bolsa Escola, que obrigava as famílias a mandarem os filhos ao colégio) e melhores condições de vida para os mais necessitados, reduzindo o sofri mento que se vê nas filas de hospitais e ambulatórios.


Com base nesses pressupostos, era grande, como disse, a aprovação a Cristovam, principalmente nas regiões mais pobres da capital. Ele chegou a ser o quarto governador na escala dos mais aprovados pelos eleitores em todo o país. Ocorre que Joaquim Roriz, seu adversário, tinha o que se pode chamar de “carisma da ignorância” – essa característica que faz o brasileiro mais humilde se identificar totalmente com políticos que simulam estar no mesmo nível dele, seja pela linguagem utilizada (os erros de português de Roriz renderam tanto piadas quanto votos), seja pela performance que apresentam, outorgando a si mesmos uma falsa legitimidade que os faz os mais autênticos representantes do chamado “povo”.

Quando se tem a graça de um canal de televisão herdado do pai – que o conseguiu graças a favores prestados durante página infeliz de nossa história – para usar todo santo dia como uma peça de propaganda onipresente, esse tipo de político se torna realmente imbatível. E a vitória é tão certa quanto errado é o sistema supostamente público de concessão de canais de televisão que permite tal situação. Desse ponto de vista, a eleição de Micarla de Souza em Natal é uma imoralidade – nada menos do que isso. O agravante é o fato de o eleitorado de Natal ter dado a vitória à candidatada da TV Ponta Negra logo no primeiro turno, sem permitir o aprofundamento de um debate mais que necessário, ao menos para tornar menos desigual a balança dessa disputa. A perplexidade vem daí.

Mas vamos voltar ao paralelo entre Natal e Brasília, Cristovam e Fátima Bezerra. Todos vocês que agora tentam juntar evidências, cotejar elementos e encontrar alguma explicação para tudo isso não têm idéia de que, naquele 1999, aqui em Brasília, vivemos algo bem pior. A derrota de Cristovam jogou qualquer pessoa um pouco educada politicamente no fundo do poço. A pergunta era: como é que as camadas mais pobres da população, tendo se beneficiado das novas políticas postas em prática por Cristovam, tendo aprovado tais políticas e o próprio governador, preferiram votar em Roriz (porque era isso mesmo o que vinha de lá: elas gostavam de ter Bolsa Escola e médico da família, mas ainda assim preferiam votar em Roriz)? A resposta estava bem antes do governo Cristovam: estava no governo anterior de Roriz, que havia distribuído lotes de terra a granel, no que criou o que hoje são cidades gigantescas, como Santa Maria e Samambaia, nas franjas da capital brasileira. As pessoas eram gratas aos terrenos que receberam de graça e nem a melhor política de emancipação social do governo Cristovam mudaria isso. Havia o agravante de uma promessa jamais cumprida por Roriz, de aumentar os salários do funcionalismo, e uma certa soberba de Cristovam no debate da TV Globo, que salientou por oposição uma simpática humildade na figura de Roriz. Mas esses eram apenas mais dois elementos de última hora, porque o retrato geral da disputa já vinha se consolidando.
Abertas as urnas, houve choro, raiva, decepção. Houve, como está havendo agora em Natal, o não saber ganhar dos rorizistas. As declarações eram do tipo “vencemos os poderosos” – aqui, o “poderoso” era o jornal Correio Braziliense, que teve uma postura fortemente crítica a Roriz durante toda a campanha. Ameaçaram apedrejar os carros nos estacionamento do Correio. Depois da posse, a primeira atitude de Roriz foi denunciar Cristovam por ter deixado a residência oficial do governador em estado de abandono. Roriz, beneficiado pelas contas públicas em dia e empréstimos que Cristovam já negociara, teve dinheiro para fazer um governo do tipo obras para quem quer ver. O Distrito Federal ganhou novos viadutos – necessários, não é esse o ponto em questão -, uma rede de restaurantes do tipo 1 real e outras coisas bem palpáveis. Já o impalpável ficou em segundo plano – e, logo, logo, a capital do país começou a tomar conhecimento de situações dramáticas nos hospitais públicos do DF, onde gente morria por falta de condições de atendimento e tratamento. Faltavam remédios essenciais que meses antes estavam lá. E gente morria mesmo, não é força de expressão. As escolas – bem, até hoje a rede de escolas públicas de segundo grau em Brasília, aqui no Plano Piloto mesmo, sofrem com a falta de professores de física e química.
Mas aquela história de “A História lhe fará justiça” não termina aí. Veio o segundo governo Roriz – sim, meus amigos, ele se reelegeu, portanto, estejam preparados para a possibilidade de mais de quatro anos com dona Micarla no Palácio Felipe Camarão. Ocorre que, na segunda gestão, não havia mais os recursos que Cristovam deixara engatilhados, não havia mais a coesão do grupo político de Roriz que também lhe garantira a eleição e reeleição – logo veio o racha que deu origem à candidatura vitoriosa de José Roberto Arruda – e o resultado foi um governo pífio, incolor, inodoro. Ou melhor: como se saberia mais tarde, um governo marcado pelo velho e previsível roubo de dinheiro público.
E é aí que aquela frase dos adesivos se confirma. Roriz encerrou o governo e se elegeu senador – mas, vejam, não tão facilmente quanto se previa, vez que seu concorrente, o então ministro dos Esportes Agnelo Queiroz, do PCdoB, teve votação inesperadamente elevada, embora não suficiente para derrotar o governador. Com Roriz já exercendo seu mandato no Senado, o Ministério Público anuncia a descoberta de um esquema gigantesco de fraude e desvio de dinheiro do Banco de Brasília, o BRB, em favor do ex-governador e seus aliados. Pressionado, Roriz renunciou ao mandato para não ser cassado. E assim estamos. Cristovam, enquanto isso, permanece lá, no mesmíssimo Senado de onde Roriz foi defenestrado.

A História, afinal, fez justiça a Cristovam – que não precisou mover uma palha para isso. É o que provavelmente vai acontecer com Fátima Bezerra, que vai se tornando com a derrota atual uma espécie de Henrique Alves de saia: aquela figura que não consegue se eleger para o executivo, embora tenha o mandato de deputado federal sempre assegurado. E só estou dizendo isso porque me vem à memória outra comparação: Micarla e Aldo Tinoco Filho. Assim como desta vez demonstrou apoiar Fátima (por injunções específicas, num apoio que não sei até que ponto ajudou ou prejudicou), Wilma Faria, na época prefeita de Natal, apadrinhou como seu candidato o engenheiro sanitarista Aldo Tinoco. No dia da eleição, naquela época pré-urnas eletrônicas, Henrique foi dormir certo da vitória e acordou derrotado. A diferença foi absurda – 900 votos, salvo engano – mas Aldo havia sido eleito. A cidade quedou paralisada, mas nem desconfiava que iria virar geléia. É que Aldo, com a ficha técnica que tinha, não assustava. E o que aconteceu? Ao final da administração Aldo, Natal parecia um chiqueiro a céu aberto, tomada pelo lixo por causa de uma greve infindável na Urbana, com serviços públicos precarizados e uma completa sensação de abandono entre os cidadãos por parte do poder público. A imagem final que a cidade tinha do prefeito oscilava do festeiro deslumbrado ao gestor irresponsável. Era a História, do seu jeito muito particular, fazendo justiça a Henrique – e digo isso deixando claro que tenho quase nenhuma simpatia política pelo filho de Aluízio Alves.
Uma última comparação, embora algo exagerada diante da espessura da candidata eleita em Natal: o que dizer da justiça que a História fez anos depois do embate entre Lula e Fernando Collor? Por falar nele, é inevitável não registrar a semelhança entre o que ocorre neste exato momento em Natal e o que se passou logo após a vitória de Collor em 1989. É o mesmo comportamento rasteiro de vitoriosos ressentidos, a mesma manipulação das emoções mais primárias do eleitorado menos educado politicamente. Essa coisa de “agora a Prefeitura vai ser do povo”. Nada mais vazio. Nada mais Roriz. É como se vitória de Collor se repetisse quase vinte anos depois em Natal. Se nada mais significasse o tamanho do atraso que se deu no último domingo, só essa declaração da prefeita eleita já seria suficiente para demonstrá-lo.
A constatação final, à guisa de previsão, é de que agora resta esperar que a História faça justiça a Fátima que, imagino, também não precisará mover uma peça do tabuleiro do xadrez político para ver tal fato se concretizar. Foi assim com Cristovam, foi assim com o Lula de 1989, foi assim com o Henrique que perdeu para Aldo de maneira tão vexatória quando Fátima perdeu agora para Micarla com essa decisão em primeiro turno. Ao fim e ao cabo, eu fico com a interpretação pré-resultado que nos deu o jornalista Tácito Costa: Natal vem há tempos sendo assediada politicamente por um tipo de candidato populista, manipulador, inculto (mais que isso, que tripudia de qualquer forma de cultura) e, mais cedo ou mais tarde, um deles chegaria ao poder municipal. Tácito disse mais: que talvez seja preciso que isso aconteça, para que a cidade tome consciência dos estragos que a política feita por tais candidatos pode causar na cidade e no exercício da cidadania por parte de seus habitantes.
Pois, então. Chegou a hora. Mas o tempo, dizia seu Cazuza, não pára. E a História é ardilosa no seu jeito todo matreiro de fazer justiça a quem se aproveita de disputas desiguais, de eleitores manipulados e de cidadania jogada fora.

P.S: Da derrota de Fátima, extrai-se pelo menos um fato positivo: não teremos de ver a companheira sendo tutelada por dona Wilma e seu Garibaldi à frente da Prefeitura.

7 comentários:

Moacy Cirne disse...

Um texto lúcido. E com as tintas verdade. Um texto pertinente. E com as pinceladas que levarão ao debate. Enfim, um texto objetivo. Claro e objetivo. Já no Rio, teremos um segundo turno entre a direita tradicional (Paes) e a direita liberal (Gabeira). Menos mal: a direita religiosa (Trivela) ficou de fora. Mas é uma pena que a esquerda tenha ficado de fora... Abraços.

Anônimo disse...

Ai, ai...o pior é isso tudo ser verdade...( a anônima)

Anônimo disse...

Tião, vim a Natal na véspera da eleição acompanhar tratamento de saúde da minha mãe. Apesar da gravidade do caso, ela fez questão de ir votar em Fátima, o que, novamente, me fez ter muito orgulho dela. Pena que eu e meus irmãos, também na cidade estes dias, não votássemos mais aqui. Além da derrota de Fátima, fiquei chocado com textos que li nas folhas potiguares. Muitos deles exprimiam um rancor que, sinceramente, nunca imaginei que vitoriosos e seus puxas-sacos teriam. Torço para que a trajetória política desses seres populistas seja tão curta quanto o ciclo biológico das borboletas.

Moacy Cirne disse...

Coloquei um parágrafo de seu textono Balaio. Abraços.

Anônimo disse...

Muito bom o texto.E como você encontro um alento nesse sonho que virou pesadelo.O seu P.S., muitas vezes me perguntava se era verdade aquilo que estava vendo (Wilma e Garibalde) falando de qualidades, que todos nós sabemos que FATIMA tem. E me perguntava, qual será o preço? Mesmo assim, entende que valeria a pena pagar, pois com certeza nossa cidade viveria uma revolução. Mas o "povo" não quiz, e tenho certeza, a história vai mostrar o erro, talvez tarde para ser consertado, mas ficará o registro. Ah, sou Edineuza.

Anônimo disse...

Tião muito lúcida sua análise, mas nATAL ficou com duas péssimas opções, O PT é um partido de direita hoje, veja Edson Lobão, José Mucio todos no Governo..e ai o pessoal vota na mais leve..Micarla. Fátima uma pessoa capaz, mas antipática, arrogante e a petralhada nem se fala. Pena, viu.

Anônimo disse...

Discordo do comentário acima: Natal tinha, sim, uma boa opção. A candidata que perdeu já prestou excelentes serviços ao estado como deputada estadual e federal, ao contrário da que venceu, que nunca fez nada como deputada nem como vice-prefeita. E isso não é dor de cotovelo de petista (que não sou). É, somente, uma simples constatação. Aliás, falar "petralha" me soa tão preconceituoso...