quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Dê cabo da virose você também


Quando o mergulhador vai fundo demais, precisa retornar à superfície aos poucos que é pra regular a pressão. Caso contrário, vira uma bomba humana prestes a se espatifar em milhões de estilhaços de carne, vísceras e sangue. Vocês já viram isso, nas lições vespertinas de "Viagem ao fundo do mar", pra ficar num exemplo só. Eu estou vivendo um pouco isso agora, claro, em escala metafórica que a vida de todo dia não tem narração em off nem pausa para o comercial, muito menos as soluções mágicas que o próximo episódio obrigatoriamente trárá.

Que papo é esse, impacientam-se os amigos leitores. É prosa de convalescente. Saí do ar por exatas três semanas - uma hibernação que incluiu aqui o espaço do blogue - derrubado por aquilo que, na falta de nome melhor, os médicos de Brasília, cidade especializada na matéria, chamam de "virose". A danada me transformou numa pasta de gente, um creme bolorento de dor no corpo, calafrios e cefaléia aguda modulada por uma fraqueza tipo zero ponto zero. Faltei ao trabalho alguns dias, no que as módicas licenças médicas permitiram - bem menos do que o necessário. Em casa, virei prisioneiro de Morfeu - e pra ser feliz, porque o melhor que me aconteceu neste período foi o excesso de sono. Uma vez que, acordado, eu era só uma coletânea de dores e incômodos corporais dispersos.

Fiquem tranquilo, não era ela, a nova bruxa silvestre que derrama seus encantos fatais sobre intrépidos caçadores de cachoeiras em Pirenópolis e adjacências - ou seja, bem aqui e bem ali onde passamos parte da semana de final de ano. O prazo de validade da picada do mosquito transmissor já havia vencido quando surgiram esses outros sintomas. Eu também já havia oferecido meu braço branquelo ao beijo frio da vacina tão esperada. Fiz exames de sorologia - isso quer dizer um tipo de exame que detecta se você está sofrendo de dengue e outras doenças de nomes menos pronunciáveis. Deu tudo negativo.

Era virose. E quando se trata de virose, o jeito é esperar. Se o estado do cidadão for por demais pastoso/desminlinguido, o máximo que dá pra fazer é sapecar pra dentro do corpo um tilenol ineficiente. Completadas as três semanas do tempo regulamentar da doencinha, o fato é que curei. Isso foi precisamente ontem, quarta-feira, 13 de fevereiro. E na conta final do estado de pastosidade, perdi feio: passei todo o carnaval de cama, assistindo a uma minissérie (Anos rebeldes) onde vez em quando lembrava do "Cachorro, não", o livro que foi objeto da postagem anterior. A certa altura, o mocinho comentava com a mocinha, indignado com a ignorância da empregada da casa e do porteiro do prédio: "Tá vendo? Dá pra gente entregar o destino do país a essa gente?" O mocinho, quem assistiu deve estar lembrado, era progressista. A mocinha era apenas covarde e individualista - mas como era bonita. O país, salvo engano, era o Brasil mesmo. Mudou muito, não é? Mas, nos aparelhos redecorados de certa classe média revolucionária e esclarecida, os penteados continuam os mesmos.

Também assisti ao filme "A concepção", o celebrado longa do diretor brasiliense José Eduardo Belmonte. Uma vez aqui no blogue, quando reclamei dos clichês nos filmes sobre (ou passados em) Brasília (a fita em questão era "Brasília 18%", de Nelson Pereira dos Santos), Klecius e Lobão me mandaram assistir imediatamtente ao filme de Belmonte. Pois bem, Klecius e Lobão: o filme é muito bom, sim, extremamente bem produzido e bem formatado. Mas ainda é um filme sobre filhos de diplomatas entediados na capital do cerrado. E a minha queixa, quando digo que o cinema brasileiro ainda não fez um filme sobre Brasília que realmente expresse o que é viver aqui, é exatamente essa: esse filme jamais realizado precisa abraçar esse povo todo que o Plano Piloto e as satélites juntam e separam o tempo todo, num processo de segregação que faz de Brasília o que ela realmente é, para além dos políticos, do Congresso, do presidente e das embaixadas. Isso "A concepção" não faz. Pra ser honesto, "O sonho não acabou", aquele filme meio precário dos anos 80, era até mais incisivo.

Agora eu vou acabar de dar cabo na minha virose assistindo ao documentário que Martin Scorsese fez sobre Bob Dylan, "No direction home". Espero ficar amarelo de satisfação. Febril, agora, só daqui a pouco, semana que vem, quando entrar de férias e iniciar uma maratona por cinemas, livrarias e outros lugares proibidos para quem trabalha em horário regulamentar. E na semana seguinte, vem Natal, Pipa e Acari, como sempre - e como é (sempre) bom.

Um comentário:

Anônimo disse...

Revi "A concepção" um dia desses. E já estou querendo ver de novo. Acho do caralho! É um recorte, claro! Principalmente da geração do Belmonte - que é a minha, a de Klecius... você tá com quantos anos mesmo, Tião? ;) - e que, mesmo não tendo sido aquele o nosso tempo de Brasília, nos diz alguma coisa. O discurso de apresentação da cidade no início do filme, na voz do Milhem Cortaz é foda: "Cá entre nós: Brasília é uma merda! Imagina um livro de História sobre Brasília. Ia ter, no máximo, umas dez páginas...". Tem uma cena de "Bye Bye Brasil", mostrando os personagens Ciço e Dasdô chegando à cidade, que também é antológica e vale o filme todo. Uma assistente social mostra as maravilhas do Plano Piloto e depois despeja o casal em frente a um barraco numa cidade satélite. Lembrei agora também de "Rap, o canto da Ceilândia", de Adirley Queiroz. Mostra outro pedacinho do quadrado. Brasília é isso. Vamos precisar de dezenas de filmes para mostrá-la. E eu já estou indócil por ainda não ter visto "Meu mundo em perigo", do Belmonte. De resto... cá entre nós, Brasília é uma merda. E eu adoro ela! ;)