quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Três livros - uma missa, uma memória, um marco

Três livros encerrados praticamente ao mesmo tempo - uma ficção, uma tese e alguma antropologia. Três temas diversos para atravessar esse final/início de ano chuvoso que se abateu sobre os dias de Brasília, pintando tudo de um branco fotofóbico. Da ficção já andei falando aqui, é aquela missa campal que ora parece enciclopédia, ora reza pelas cartilhas do grande teatro, ora suprasuma-se em literatura pura e viva. É a preleção verborrágica do padre Melville, o "Moby Dick" mais que ancestral - o romance que pesca baleias como quem fisga humanidades.

É preciso nadar no mar de palavras - às vezes adormecido e profundo, às vez revolto e tempestuoso - até a página 526 para que finalmente se dê o embate fatal contra a baleia mítica. Tamanha espera mais que explicita o objetivo da prosa, de usar a obsessiva busca pelo mamífero marinho apenas como mote para especular sobre as - às vezes também infrutíferas, às vezes nem tanto - buscas humanas. Enquanto você cursa um intensivo sobre a vida, as técnicas, as crenças e a antropologia ligeira vigente nos baleeiros de outrora, involuntariamente também mergulha em seus pequenos mares internos, infestados de tubarões e pontuado por navios naufragados de velas em decomposição.

Antropologia ligeira é o forte de "Velhos costumes do meu sertão", o pequeno clássico regional de Juvenal Lamartine que cansei de ver nas bibliotecas escolares, que sempre me chamou atenção pelas belas e realistas ilustrações - de Percy Lau - e que finalmente fui ler numa nova edição bancada pelo Sebo Vermelho e adquirada numa dessas bem-aventuradas viagens anuais a Natal. Outro dia eu coloquei aqui uma postagem ("As horas do sertanejo"), a título de curiosidade, mas que já muito adianta sobre o livro inteiro. Para um morador urbanizado do século XXI de Natal, por exemplo, o livro de Juvenal Lamartine - que foi governador do Rio Grande do Norte, ativista republicano e deputado federal no seu tempo - muito tem a informar sobre a vida precária do sertanejo clássico. Para o turista que hoje vai ao Nordeste e se surpreende e se farta diante de uma paçoca sertaneja, lá está no clássico de Juvenal a informação de que aquela era a comida que o sertanejo levava no alforje quando precisava fazer viagem de mais de um dia.

Poucos dias - dois, no máximo, caso o leitor disponha de tempo - é o que você levará para dar conta do terceiro livro dessa lista - e o que mais me despertou a atenção, abrindo inclusive um capítulo novo no meu catálogo de interesses a partir de agora. Sem mistério, é o livro-tese "Eu não sou cachorro, não", que toma emprestado o título do famoso bolero de Waldik Soriano para falar, simultaneamente, de temas como música cafona, memória coletiva, construção da história e, sim, senhor, exclusão cultural. Aposto que você não havia pensado nisso antes.

Nem eu. Mas fica difícil, depois de ler o trabalho de Paulo César de Araújo (sim, senhor, o autor da polêmica biografia arrestada de Roberto Carlos) não enxergar a história e o panorama cultural - especialmente o musical - brasileiro sem passar por esse ponto de vista. Que é muito simples: toda a historiografia sobre a música popular brasileira ignorou solenemente até agora a existência de figuras como o próprio Waldik Soriano, Nelson Ned, Aguinaldo Timóteo, Paulo Sérgio e Odair José, só pra ficar nos mais estudados ao longo do livro. A ressalva é a seguinte: você não precisa gostar deles, mas é forçoso reconhecer que eles existiram, venderam milhares de discos, foram efetivamente ídolos populares e, para além do epíteto de "cafonas", acabaram expressando ainda que involuntariamente (muitas vezes, corajosamente, como foi o caso de Odair José) o fenômeno do preconceito na nossa brava sociedade.
Eu sei, você sabe, Paulo César Araújo sabe, todos sabemos, eles eram apenas "cantores de empregadas" - classificação sintomática dada por uma classe média universitária que, só agora percebemos, não era assim tão avançada politicamente quanto sempre se supôs. Aliás, o livro de Paulo César deixa muito claro que essa historiografia sempre destacou a contribuição da MPB clássica na resistência à ditadura militar - ao mesmo tempo em que os cantores cafonas eram enquadrados na categoria dos colaboradores do regime. E o autor demostra por "a" mais "b" que não foi bem assim que as coisas aconteceram - e elas só passaram à posteridade com essa aparência ou por preguiça intelectual dos pesquisadores e jornalistas especializados ou por preconceito mesmo por parte desta mesma mídia, incapaz de ouvir qualquer voz que não fosse aquela vinda dos auto-falantes dos toténs da classe média universitária.

Por tudo isso, arrisco dizer aos meus parcos leitores que "Eu não sou cachorro, não" é um marco na biblioteca que aos poucos vem sendo construída no Brasil em torno da música popular e seus implicações sociais, políticas e econômicas. Um livro tão importante quando o hoje já clássico "Chega de saudade", de Ruy Castro - e seu exato reflexo invertido. Como num jogo de espelhos, o fato é que os dois se complementam exemplarmente. O primeiro surgiu num momento em que a bossa nova estava esquecida e teve o mérito de recuperar para as novas gerações a importância desse gênero musical na construção de uma música que, sendo brasileira, adquiriu uma sonoridade universal. O segundo - cuja chegadas às livrarias foi muito menos festejada do que o primeiro - abre um novo capítulo na construção da história e da memória coletiva do país, descontinando uma perspectiva que tem tudo a ver com o tempo que estamos vivendo.
Estou falando de um tempo marcado pela figura de um presidente da República que já foi migrante nordestino e torneiro mecânico - que já foi, efetivamente, um integrante do tão falado e tão pouco compreendido "povo" - e que, por isso mesmo, é alvo de uma rejeição social e midiática inédita na história do país. Mas cuja mera existência pode estar levando pesquisadores a abrir aquelas mesmas perspectivas de que se falou nos parágrafos anteriores. Uma perspectiva histórica, social e cultural que talvez não seja considerada "de bom gosto", mas que certamente será menos excludente.

"Eu não sou cachorro, não" está inscrito nesse panorama. Por isso ele não é um livro qualquer, ou mais um livro sobre música popular brasileira. E esse Paulo César de Araújo, com esse nome comum, vocês podem anotar, ainda vai dar muito o que falar.

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