quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Posse


Enquanto esperamos aqui embaixo, nos porões reciclados da moderna arquitetura brasileira, acima de nós os 509 - faltaram 4 eleitos - congregam-se no banquete eletrônico que lhes dará um novo cacique. É a sessão preparatória para a instalação de mais uma legislatura na Câmara dos Deputados e tudo soa a festa. Para muitos, cívica e democrática. Para outros, cujo raio de visão não consegue se deter na moldura institucional dos festejos, também brega e deslumbrada. O mais provável é que seja as duas coisas: um ensaio demonstrativo de nossa tenra república ritual, essa que tropeça entre as minas mal enterradas de vinte e tantos anos da mais recente ditadura e os cumes cidadãos de montanhas de benefícios de última hora, nesta floresta de bolsas e cotas que de fato tão poucos têm e tantos querem desbastar.

No ringue onde em breve deve se exibir com óculos de intelectual convertido o nosso rústico deputado Popó, o espaço ainda é ocupado por gente menos elástica, embora o adjetivo se aplique mais à fisicultura do que à prática política. De um lado, estava o "ursinho carinhoso" Marco Maia, um avatar luliano de biografia similar, embora bem menos notável, à do presidente em descanso. A comparação vem da trajetória de operário e sindicalista alçado ao panteão da nova política. E o apelido vem de outra semelhança, com os personagens do desenho animado, o que garante um ar de bom mocismo bem diverso daquele exalado por seu antigo concorrente, o voraz Cândido Vaccarezza, cujo nome é por só uma ironia. Do outro lado do ringue deste salão verde vertido em ginásio político, estava o representante das rosquinhas Mabel - Sandro, o deputado com eterna cara de menino dono da bola. Correndo por fora, os aparícios dos extremos de sempre: Chico e Bolso. Outra dupla perfeita.

Um quarteto, pois então, à altura do rodapé em que não raramente essa disputa pela Presidência da Câmara termina resvalando. Ursinho Ccarinhoso versus Rosquinha Mabel, o ativista carioca do PSOL contra o representante galhofeiro dos ditadores mais recentes. O que faltou, então, para além dos vestidos chamativos que as esposas dos deputados em dia de posse envergam como se estivessem não no interior cinzento do prédio do Congresso mas sobre o tapete ensolarado da entrega do Oscar... Compostura não foi - e o nobre parlamentar Tiririca estava lá para garantir a polidez que não se espera de um legítimo representante da fauna humana brasileira. Era, quem sabe, o mais sério e compenetrado do salão - ainda que por timidez atávica da raça-povo quando em ambiente estranho e solene. O que faltou mesmo foi alguma espécie de grandeza, eis a palavra.

A festa da posse dos novos deputados, com seu habitual tumulto de trânsito caótico nas cercanias do Congresso, sua costumeira reclamação sobre a falta de lugares para todos (o Plenário Ulisses Guimarães, quem não sabe, tem apenas 400 cadeiras para acomodar os 513 legisladores eleitos) e sua feérica aparência de encerramento de festa de interior travestida de rito nacional tem direito a ser tudo isso. Mas na disputa da cadeira mais cobiçada, espera-se sempre um quê de - a palavra não é bem superioridade, o que denotaria uma escala de valores que destoa da idéia de representatividade política igualitária - grandeza. Aquela qualidade que não se define bem, mas sente-se perfeitamente. Aquele talento de calar o Plenário, como raramente se vê, mas acontece - e não interessa aqui se com esta ou aquela boa ou má intensão.

Não é que Marco Maia seja um mau presidente, ou Mabel uma piada em forma de liderança. Cada um deles tem seus méritos - a biografia paciente do primeiro e a teimosia corajosa do segundo em se lançar candidato - mas o ocupante que a tal cadeira implora precisa vir vestido com alguma forma de brilho, alguma discreta capa de cumplicidade e ao mesmo tempo distanciamento que não parece envolver o eleito. Marco Maia nasce, desenvolve-se e vence dentro da própria instituição, alimentado pelos seus rituais de negociação, vitaminado pelo que a corporação tem de mais particular. Não por acaso, passou de vice a presidente. E o cargo parece pedir alguém que venha ou vá além disso, como um Ulisses Guimarães chutando os cães dos militares ou mesmo um Luiz Eduardo Magalhães que, embora favorecido pelo oligopólio político familiar, tinha no olhar a aspiração de atingir aquela outra presidência, bem mais poderosa. Pode-se censurar o vasto apetite político do clã, mas é preciso admitir que o plano político de longo prazo de seu representante dava outra coloração à sua presidência legislativa.

O que talvez esteja ocorrendo seja a consagração da pessoa comum no altar da política pátria. E aí sim a eleição de Marco Maia faz todo o sentido: é o império da normalidade sem apelo, embora eficiente e bem representativa do corte transversal que expõe o nervo da sociedade brasileira. Como Dilma no Planalto e a antiperformance presidencial que não para de impressionar os críticos da política. Menos espetáculo e mais ação. Carisma engavetado em função de um desempenho que fala por si só. Um sinal dos tempos na era pós-Lula, cautela e canja de galinha para amaciar o tecido social onde certa nova direita tenta cravar as estacas de sua barraca de guerra. Se assim for, tanto melhor - embora a presença marcante de uma personalidade singular sempre faça alguma falta no horizonte da história em andamento. Não por paternalismo genético de nossa parte, mas por necessidade de lideranças com capacidade não só de enxergar o país como ele é mas também de comovê-lo até fazer um e todos saírem minimamente do lugar. Até recentemente, tivemos um exemplo bem marcante de alguém assim.

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