terça-feira, 17 de agosto de 2010

Não atire pedras na santa


Diante da visão acachapante da estátua de Santa Rita às margens da estrada, em Santa Cruz, o primeiro impulso, depois do espanto, é de jogar pedras. Denunciar em brados tão colossais quanto o próprio monumento o absurdo que é aquela obra megalômana. Levantar a voz para reclamar do gasto exagerado de dinheiro em favor de algo que não representa benefício imediato para o povo. Pular do assento do carro em movimento e erguer o braço num arroubo de indignação só de imaginar a possibilidade de superfaturamento e outras mumunhas que monumentos daquela estatura quase sempre permitem. Mas nem sempre é bom dar ouvidos ao primeiro impulso.

Diante da estátua gigante de Santa Rita lá em Santa Cruz, aquele monumento tão grande que quase dá pra ver da entrada de Tangará e da saída de Currais Novos, é melhor praticar um certo tipo de humildade intelectual. Não precisa se ajoelhar aos pés da santa, até porque ela é tão grande que mesmo de pé a gente fica parecendo formiguinha muçulmana tombada na direção de Meca. É só uma questão de pensar melhor antes de se curvar ao senso comum, que muitas vezes está certo mas em tantas outras é apenas uma abreviação precipitada de raciocínios ligeiramente mais complexos.

O fato é que, se Nova Iorque tem sua Estátua da Liberdade e o Rio de Janeiro seu Cristo Redentor, por que a pobre da Santa Cruz – que, aliás, nem é mais tão pobre assim – não pode ter sua Santa Rita transatlântica? Seria porque fica no sertão, por pertencer à categoria menos votada das cidades do interior ou pelo fato de que estátuas gigantes combinam mais com mar e arranha-céu em volta do que com cardeiros e pontos de moto-táxi? Pois arrisco dizer que, justamente por não ter o charme de uma Wall Street ou o apelo de uma Enseada de Botafogo é que Santa Cruz merece, mais do que NY e Rio, um monumento como sua Santa Rita gigante. Por que se os cariocas não tivessem o Redentor, teriam “ene” outros monumentos, naturais e artificiais, para chamar de seus e fazer deles um espelho simbólico de seu próprio estilo de ser e viver como aglomerado urbano. Nova Iorque, idem: Central Park, a Ponte do Brooklyn, Woden Allen e por aí afora.

Esta não era bem a situação de Santa Cruz antes da inauguração da estátua de Santa Rita. Havia o casario, a igreja, praças, lanchonetes e aquele vasto sertão às margens da BR em condições de se confundir com várias outras cidades do interior nordestino. Com Santa Rita olhando a tudo e todos do alto daquele monte a perspectiva muda. Santa Cruz ganha uma cara, um emblema, uma marca – religiosidade à parte. Mais do que implicações na área da política (que o prefeito construtor, obviamente, explora), do que qualquer religiosidade manipulada (que a igreja, também, não iria deixar de aproveitar), o que conta com a Santa Rita gigante de Santa Cruz é a sensação de identidade que ela traz para um não menos vasto contingente populacional.

O cidadão que contempla a santa na colina distante se engrandece como se fora ele próprio o monumento municipal – e não é ruim que seja assim, se a estima própria minimamente equilibrada é também o primeiro passo para tirar da passividade a pessoa mais desprovida de horizontes. Se NY tem direito a se mirar na Estátua da Liberdade e se medir por ela, todo santo dia, e se o mesmo pode ser dito do Cristo que abraça a difícil vida carioca em sua totalidade, então que motivos justificam o fato de o morador de Santa Cruz não desejar o mesmo? Aqui se trata de um impulso humano que remete ao tempo das pirâmides. Se, de uns tempos pra cá, tornou-se politicamente incorreto o poder público gastar dinheiro construindo o que Chico Buarque, em outro contexto, chamou de “estranhas catedrais”, é outra história. E se o ponto de vista jornalístico imediato corrobora apressadamente este mesmo julgamento, pior pra ele que não compreende a forma como a população – presumivelmente, seu público – observa e movimenta-se no mundo em sua volta.

A verdade é que os grandes monumentos da vida urbana, sejam religiosos como esta Santa Rita ou utilitários como a Ponte Newton Navarro, tem ainda o poder de se reinventar aos olhos do habitante. Há aqueles que, mal concluídos, perdem a graça e não conseguem qualquer empatia com o cidadão, como aconteceu com o Papódromo de Natal. Outros nascem sob tempestades de indignação justa mas, pacientes, aguardam o tempo passar para serem vistos, aos poucos e crescentemente, com olhos de simpatia. É o caso da Ponte JK, em Brasília. Não há uma gota de água do lago Paranoá, por sobre o qual corre a bela ponte, que não desconfie da forma como foi empregado o dinheiro na sua construção. Nem por isso a ponte deixa de ser admirada hoje pelos que moram na capital do país, tornando-se um emblema tão forte quanto o muito apredejado, mas também imensamente querido, palácio do Congresso Nacional. Que, aliás, com ou sem escândalos políticos nos jornais, vive cheio de turistas.

* Publidado no Novo Jornal (Natal-RN)

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