sexta-feira, 16 de julho de 2010

A ressurreição de Ravengar


Meu amigo Carlão, que está convencido de que estamos a um passo do totalitarismo, vai adorar: no novo filme do cineasta paulista Ugo Giorgetti, que vai se chamar "Solo", o ator Antônio Abujamra aparece sozinho, do início ao fim, trancado num apartamento discorrendo sobre as mazelas próprias e as do mundo ao redor que ele, naturalmente, odeia. Repare o que diz a revista da Livraria Cultura sobre o filme: "No monólogo, o personagem, interpretado por Abujamra, trata com perplexidade e sarcasmo sua própria existência e o modo como se relaciona com o cotidiano da vida moderna, que ele não compreende mais. 'É uma forma de mostrar a decadência do mundo, por meio de um cara - já velho -, que fica em casa observando sua própria estupidez e a estupidez do mundo, de um cotidiano trágico como é o cotidiano brasileiro. É tudo muito feio', justifica. O ator cita a frase do poeta Paul Valéry para resumir o sentimento predominante no filme: 'Os acontecimentos me enojam'".

Andei trocando uns e-mails com meu amigo Carlão e não tinha como não lembrar dele lendo essa pequena reportagem sobre o filme na Revista da Cultura. Note como o texto legitima essa visão presente no filme reportado, de um mundo mal, errático, sombrio e necessariamente falido, seja em termos culturais, econômicos, sociais e por aí afora. E tudo isso é feito de uma maneira ocasionalmente charmosa, com o brilho blasé que a decadência parece ter aos olhos da intelectualidade. Fico pensando o quanto essa intelectualidade consegue se distanciar da realidade, que pode ser totalmente desprovida de charme mas não de outros valores que não pesam muito na balança de quem vê o mundo por esse prima. Já fui assim, já pensei nestes termos, mas sempre mantive um pé no chão das privações que levam o sujeito a se animar com qualquer possibilidade de felicidade. E hoje, quanto mais velho fico, mas me impressiona esta obsessão com a queda, essa atração para o fim que parece estar por trás deste tipo de análise da realidade brasileira ou mundial. E me irrito mesmo é quando vejo este tipo de apreciação - a que, bem ou mal, tenho que respeitar, embora também possa comentá-la nos termos que uso aqui - sendo usada para interesses outros, ainda mais ilegítimos, como mui frequentemente acontece. Em períodos eleitorais, então, nem se conta.

Que outras pessoas vejam o mundo por meio dessa lente escura que deixa tudo com um ar terminal de que nada-vale-a-pena é aceitável na medida em que muitas outras coisas são. Mas meu amigo Carlão me preocupa, porque às vezes tenho a impressão de que ele está vivendo trancado em casa 24 horas ouvindo a rádio CBN. Carlão, rapaz, abra a janela, respire um outro ar, ouça as novas vozes roucas que vem das ruas. E se meu apelo não lhe sensibiliza, resta-me, com a formalidade da próclise, reproduzir aqui um outro trecho da mesma reportagem da Revista da Cultura, onde se lê uma "aspa" do cinasta Giorgetti que diz assim: "As pessoas acham que dentro de um regime totalitário não há normalidade, o que é um equívoco. A vida continua, em corda bamba, mas não para".

Esclareço a circunstância dessa última frase, para que não haja confusão (mais uma) com o governo Lula. Giorgetti disse aquilo lá a propósito do seu próximo projeto, o filme "Corda Bamba", que apresenta o cotidiano de diferentes personagens brasileiros no ano de 1971.

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