sábado, 31 de julho de 2010

O Brasil do Bruno


Um amigo muito querido faz um pedido, ou uma provocação sadia – não sei. Ele espera que eu fale menos aqui sobre uma Natal que não mais existe e mais sobre o Brasil do Bruno. De cara eu gostei da expressão que o amigo usou: o Brasil do Bruno; repito, já tomando o termo composto como um refrão verbal daqueles que resolvem a vida de qualquer pessoa que viva da palavra escrita. Mas alto lá. O Brasil do Bruno, como slogan involuntário de um país errático, pode ser um engano circunstancial, meu amigo. Porque a expressão, forte e aliterativa, pode ser uma armadilha dourada, do tipo que encanta o olhar do pássaro confuso que cada um de nós pode ser e nos colhe num instante fugaz de ignorância. Captura nosso raciocínio numa confortável arapuca de palavras, favorece uma impressão de inteligência própria, contorna uma opinião que estava apenas pontilhada. Numa palavra: ilude, causando uma impressão de realidade que não contém o real – este ente múltiplo como as figurinhas de um videowall japonês e escorregadio como um pau de sebo de festa matuta.

Meu amigo, meu irmão: quando ouço a expressão “o Brasil do Bruno”, escuto invariavelmente um sermão supostamente esclarecido sobre as mazelas brasileiras, nossas misérias de estimação, de que cuidamos tão bem (digo, tão mal); nosso deleite intelectual de nos colocar acima desta merda toda, com a superioridade de quem não está comprometido com nada – portanto, está limpo – mas também a inferioridade jamais assumida de quem também não move nada para tirar o que quer que seja do lugar. Enfim, quando ouço a expressão “o Brasil do Bruno” querendo sugerir que somos mesmo uma raça condenada ao atraso, tentando manter acesa a todo custo a chama da nossa própria iniqüidade, procurando de todas as maneiras segurar a onda de um estado de coisas do tipo anos oitenta em molho de niilismo blasé, vejo imensa na sala a sombra da nossa culpa de estimação . Aquele álibi perfeito para a paralisia dos nossos atos ou, o que é bem pior, a imobilidade teimosa da nossa mente.

Amigão, o Brasil do Bruno é sim o país da bossalidade remunerada. A pátria da violência desenfreada. O território do jornalismo novelesco que troca o debate igualitário pelo medo coletivo. O Brasil do Bruno é sim o país onde a saúde pública morre como um cão de rua e a educação claudica, especialmente nas categorias de base. É igualmente o Brasil que coleciona estatísticas de fragilidades sociais, ipeas de auto-imolação bem tabuladas, índices indigentes de leitura, fartura de casos de corrupção e inacreditáveis índices de sobrevivência de oligarquias estaduais – embora este último item esteja, ao menos aparentemente, em processo de mudança (ainda que não entre nós, admito).

Mas o Brasil do Bruno, amigo velho, também é um outro que teima em fugir do ângulo de visão estreito de muita gente boa, que estudou sociologia, praticou jornalismo, exerceu a ciência política, percorreu os clássicos da literatura ou só bota a cara fora do carro quanto tem certeza de que está na garagem do prédio ou na porta da loja. E este outro Brasil do Bruno, escondido sob as luzes do último escândalo político ou criminal, é um país renovado, que aparece no sorriso daquela sua prima pobre que você não vê há tempos, que se materializa no emprego novo daquele conhecido que você não avista desde os tempos do governo Itamar, que se traduz em um pouco mais de dinheiro no bolso – e menos no bolo geral da renda pátria – daquela simpática dona de barraca de frutas ali na entrada de Nova Parnamirim.

Este outro Brasil do Bruno é um país que não tem vergonha de ser “do povo”, que acredita em crescimento possível, que não se deixa enganar por qualquer conversa de quem se mostra pronto a resolver tudo em passe de mágica. É um país que não quer mais esperar pela gestão perfeita se divisar no horizonte a possibilidade de que pelo menos metade de seus problemas tenha um indicativo de solução ou melhoria. É um Brasil de brasileiros forjados em décadas de discursos vazios de resultados, um Brasil que passava ao largo da pauta dos literatos, da agenda dos professores universitários, da visão dos planejadores oficiais. Um Brasil invisível até outro dia, que de um dia para o outro parece que resolveu botar a cara na janelinha de casa e abrir aquele sorriso de quem se reconhece em ações mínimas capazes de valorizar suas existências antes meramente numéricas.

Este é o Brasil que a imprensa insiste em não ver – não sabemos se por cegueira natural ou má vontade implantada. O Brasil que dorme e acorda lá fora enquanto você está lendo seus poetas de vanguarda. O Brasil onde seus filhos e seu netinho se ocupam de viver de olho na oportunidade que surge, na possibilidade que se anuncia, sem perder de vista o panorama dos problemas que são tantos mas também sem fechar os olhos para o que efetivamente está mudado. Não devia, mas vou apelar, citando o seu tão querido Belchior, amigão: “É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.

Meu caro amigo, me perdoe, por favor. Se não lhe faço uma visita ou se pego pesado no verbo aqui empregado é por querer bem à sua pessoa e não querer lhe ver repetindo, qual fantoche que você não é, o discurso fácil e de interesses restritos que outras vozes, mais poderosas que as nossas, espalham por aí. A tais vozes muito interessa propagar toda e cada uma das ondas turbulentas daquele Brasil do Bruno, contumaz no erro e sombrio na frieza. Mas não se deixe vencer pela força estética do horror que salta do filme a esta altura já antigo para a vida real de todo dia. Esta parcela de horror, por mais medonha que seja, não é todo o real – embora seja parte importante e incômoda dele. Abra os olhos também para o Brasil do João, o Brasil da Maria, o Brasil da Joséria, do Bernardo, da Cecília e do Vinícius, tão fortes e tão verdadeiros como o Brasil daquele outro de tão nefasta presença.

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