quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aos campeões do preconceito


O Brasil está fora da copa, mas o preconceito permanece em campo. Infelizmente, esse é um artilheiro indesejado que só o tempo e a teimosia conseguem vencer. Um time sempre adversário mesmo para quem o considera um aliado. Um gol contra permanente que anula conquistas e reduz o rendimento de todos, seja qual for o lado do campo em que estejam jogando.

A seleção de Dunga ainda não havia sido eliminada pela Holanda quando, no blogue que mantém no portal do jornal O Estado de São Paulo, o escritor Marcelo Rubens Paiva disse que nesta Copa o brasileiro não estava torcendo muito pelo país. Que nas rodas de bar ou no circuito dos boleiros ninguém se empolgava muito com a escola Dunga de futebol.

Já outro oráculo paulistano por excelência, o jornal Folha de S. Paulo, publicou anúncio da rede de supermercados Extra sugerindo, antes do jogo contra o Chile, que o Brasil seria eliminado naquela partida. Você não leu errado – eu escrevi “antes” da partida que resultou num placar de 3 X 0 a favor do Brasil. O anunciante se retratou, mas responsabilizou o jornal pelo erro, como sabe quem acompanhou o fato pela internet. A prática publicitária e jornalística de preparar, por antecipação, duas possibilidades de notícia é normal e recorrente, mas o episódio não deixa de ter um fundo freudiano de ato falho mas nem tanto.

Encerrada a participação brasileira, se a gente juntar esses dois fatos – a constatação de Rubens Paiva e a vexatória bola fora da Folha – com o esporro em rede nacional que a Globo deu em Dunga fica mais do que evidente: tanto quanto a jabulani, entrou em campo nesta Copa aquele jogador inesperado chamado preconceito. Dizem que joga bem este moço – um galeguinho metido que dribla a insensibilidade de um, dá um chega pra lá na decência futebolística de outro e, quando a galera vê, está cara a cara com o goleiro adversário, pronto para marcar mais uma humilhação institucionalizada no placar do segmento menos favorecido que encontrar pela frente.

De maneira que, para nós brasileiros comuns que acompanhamos tudo de longe por meio de tevês gigantes como não costumavam ser nossos preconceitos de alcova, a Copa da África virou, sintomaticamente, uma amostra de preconceito social e linguístico. Duas variáveis do mesmo tipo de reserva que determinadas camadas da população alimentam em relação a outras, historicamente menos valorizadas. E todas essas manifestações de preconceito em HD se concentram na figura do técnico rude, bronco e que mal domina o nível idiomático mínimo exibido para a boa performance nas entrevistas coletivas.

Dunga, descobriram jornalistas de português castiço burilados nas leituras mais soberbas, foi useiro e vezeiro em praticar o mais manjado erro de concordância que um falante do português pode cometer: “com nós”, ao invés do ultracoloquial “conosco”, esse sim um termo comuníssimo em cada esquina brasileira, seja no cruzamento da Ipiranga com a avenida São João, seja no encontro da Ulisses Caldas com a avenida Rio Branco. Claro que Dunga poderia adotar o “com a gente”, mas aí ele deixaria de ser um pouco o Dunga que marcou a ferro, palavrões e nervosismo sua imagem na mente dos brasileiros que torceram pela seleção até a sexta-feira passada. Ou não torceram, segundo Marcelo Rubens Paiva.

Pois cada vez que Dunga sapecava um “com nós” numa coletiva, era como se o Brasil inteiro, bem-falante como Bilac algum poderia imaginar, tivesse uma síncope de indignação ultrajante. Ao menos nas cogitações dos professores de português de cursinho, dos jornalistas formados nos manuais de boas maneiras das editoras Globo e Abril ou da elite cabocla que habita o quem-é-quem do neocolunismo político e social brasileiro.

Não pega nem bem falar a esta altura em Galvão Bueno, mas registre-se, com próclise e tudo, que cada dolorido “com nós” do Dunga equivalia, na cotação da moeda verbal que sustentava a nova auto-estima brasileira (e ainda sustenta, apesar da desclassificação), a um pretérito “éééééé do Brasil” do locutor pátrio em campeonatos passados. Galvão, afinal, faz sucesso porque sabe como poucos a maneira eficiente de falar à média idiomática nacional, ao contrário do que julgam seus algozes.

Pois Dunga, com seu português de estivador e sua expressão tosca de gente sem estudo, converteu-se em emblema de uma nacionalidade revisada – e condenada, claro. Nada mais apropriado a uma “era Lula” na política do que um Dunga no futebol – e certamente grande parte da carga de antipatia que o técnico inspirou deve-se menos à quantidade palavrões que ele disparava diante das câmeras globais do que de similaridades outras que era (e, derrota à parte, ainda é) capaz de sugerir, ainda que em grau subconsciente, ao novo cidadão brasileiro médio.

São inúmeras as maneiras de se exercer dominação, sobretudo de um grupo social sobre outro. E se a gente parar pra pensar vai ver que a exigência da correção idiomática não é apenas mais uma delas – é, sim, uma das principais, porque das mais frequentes. Vai desde o nível doméstico da correção entre amigos, quando um deles escorrega numa conjugação verbal e é pedantemente alertado por outro, até a escala institucional em que se cobra que um presidente da República não pode falar “merda” numa cerimônia pública, ainda que seja para dizer, sem disfarces, que deseja tirar o povo daquela substância repulsiva.

Dunga, com seu português de esquina e sua estampa de sujeito comum, estava bem no meio de campo desta batalha social disfarçada de embate verbal. Poderia até vencer a Copa da África, mas com toda certeza ainda vai levar – ele e quem se viu representado pela sua figura – muito mais tempo para sair vitorioso naquela outra.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

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