segunda-feira, 10 de maio de 2010

De autoria desconhecida


E se todos os grandes clássicos
não passarem de mensagens psicografadas em momentos
de mera distração?


Levada às últimas conseqüências, a tese informal do filme “Chico Xavier” tem tudo para acabar com um dos valores sagrados no mundo da literatura: o conceito de autoria e, é claro, o orgulho mundano decorrente dele. Segundo o médium demonstra no filme, com humildade e bom humor, é bem possível que grande parte do que foi publicado até hoje, dos dez mandamentos até os clássicos mais cabeludos, tenha sido apenas o resultado de psicografias distraídas. Seriam os grandes autores nada mais do que médiuns involuntários?

Se for assim, teremos de nos conformar com o fato de que todos os grandes romances, as mais eloqüentes análises publicadas, os mais sensíveis poemas e até os aforismos mais amargos fazem parte de um grande patrimônio da nossa pobre raça humana, num amálgama literário coletivo que intimida qualquer esperança de projeção individual de quem quer que seja – tanto faz se Shakespeare ou Dante. Dá no mesmo.

O que conta é o valor intrínseco do que foi dito, problematizado, sublinhado ou ilustrado. O que faz diferença é tão somente a obra, que só por acaso acabou sendo escrita por Proust ou Jorge Amado – ambos, como todos os outros, de A a Z, apenas veículos humanos para verdades, alertas e sabedorias oriundas daquele lugar nenhum a quem a gente chama de além.

Essa conjectura de que todo escrito célebre pode não ser mais que uma psicografia não autorizada teria outros efeitos. Porque, ao nivelar num mesmo patamar – os espíritas diriam “num mesmo nível vibratório” – toda a grande obra até então considerada de natureza absolutamente humana, extinguindo as vaidades decorrentes, seria como se alguém decretasse um estranho tipo de socialismo literário. Já que ninguém é, rigorosamente, o autor de nada, tudo pertence a todos – e qualquer um, eu, você, Dilma Rousseff ou o taxista da esquina, poderia muito bem ter sido escolhido para psicografar a próxima grande obra capaz de redefinir a humanidade.

Seria o fim das noites de autógrafos. Seria a ruína dos advogados especializados em direitos autorais. E seria também a extinção daquela entidade globalizada chamada fama literária, que agracia tanto o mais recente e badalado filósofo europeu quanto o mais rentável escritor de best seller. Eu não sei você, mas aqui no meu canto sempre desconfiei de que Dan Brown, com suas elucubrações fantásticas sobre anjos, demônios, descendentes de Cristo e lunáticos que se flagelam é um senhor médium, embora naturalmente sem a fama de um Chico Xavier – o que seria demais no caso dele.

Tudo isso dá o que pensar: que tipo de espírito agiria sobre a alma de um Graciliano Ramos para que ele criasse, aparentemente do nada, criaturas como Paulo Honório, o dono da fazenda São Bernardo, além de Fabiano e sua família de migrantes miseráveis? Imagino que, no lugar de guias espirituais de extração aprimorada, na verdade o escritor alagoano tenha sido veículo para a expressão dolorida de gerações e gerações de amotinados nordestinos, desencarnados pela fome crônica. Já um Jorge Amado, com livros que compõem um compêndio quase ilustrado da revigorante vida baiana e brasileira, repleto de verdades populares, deve ter escrito tendo ao lado, além da presença visível de Zélia, os fantasmas vadios de todos os rufiões da baía de Todos os Santos.

É importante lembrar que essa tese acidental do filme “Chico Xavier” também explica a dor de cabeça crônica que acometeu outro grande escritor brasileiro, o poeta João Cabral de Melo Neto. Quando todo mundo pensava que se tratava de um problema médico – ou de uma decorrência do conhecido e propalado rigor do poeta – o que se dava na verdade eram os incômodos que a psicografia provoca na mente do médium em atividade. No caso de João Cabral, um sujeito com toda a pinta de ateu convicto e praticante – seja lá o que isso quer dizer – havia a vantagem adicional de se tratar de pessoa absolutamente insuspeita. Perfeito para os espíritos que não fazem a menor questão de autoria e adotam pseudônimos do tipo genérico, como o Emmanuel do filme e da vida de Chico Xavier.

Agora vocês avaliem o perfil de outros autores anônimos que agiram por meio de grandes escritores brasileiros e mundiais, como... Vinícius de Moraes! Que almas estreladas de desenfreado amor teriam soprado ao ouvido do autor dos mais famosos e citados versos sobre paixão e fidelidade? E já que a gente se meteu nessa enrascada de puxar o fio do assunto, imagine o leitor que multidões de espectros hão de ter sussurrado por dentro do juízo em transe de um certo William Shakespeare. Tudo para que ele, lá no seu canto, ganhando a vida com umas peças de teatro de cujo valor real certamente nunca há de ter tido uma noção completa, escrevesse – quer dizer, psicografasse – a obra que hoje é considerada aquela que melhor traduz os habitantes desta bola chamada Terra?

Bem, se para nada disso servir a idéia embutida no filme “Chico Xavier”, pelo menos uma serventia ela terá, que é o poder de acabar, a partir deste exato momento, com o rancor venenoso do típico escritor de província – já que todos, locais, nacionais e mundiais, igualam-se na mesma impotência e a autoria pertencerá sempre a desinteressadas entidades do além, desestimulando qualquer tipo de polêmica. Se bem que, falando em polêmica, há sempre o risco de, numa dessas sessões espíritas de sábado à noite, uma entidade baixar entre os encarnados para avisar que, ao contrário do que todo mundo pensa, tudo o que um certo e desconsiderado escritor chamado Paulo Coelho escreveu, seja bom ou ruim, é obra dele mesmo. Um caso raro, raríssimo, de surpreendente autoria própria, ainda que feita a partir da obra de terceiros, que por sua vez apenas psicografaram as idéias alheias – e portanto não podem reivindicar originalidade alguma.

Essa surpresa – e as conseqüências que ela traz embutida – nem Freud, ou quem quer que tenha ditado ao doutor austríaco cada capítulo de sua teoria psicanalítica – explica.

2 comentários:

Roberta AR disse...

Meu caro, você acabou de esbarrar numa outra coisa importante quando se fala do direito de autor: o acesso ao conhecimento. Será que o conhecimento humano não deveria mesmo ser de domínio público? Essa discussão está à toda com o projeto de reforma da lei de direitos autorais no Brasil. Eu mesma, ainda não cheguei a uma conclusão sobre isso, mas tenho lido coisas interessantes como este texto que reproduziram no Trezentos: http://www.trezentos.blog.br/?p=4560

Anônimo disse...

Pelo visto o chico xavier, rei da spiritual embromation, consegue iludir até algumas mentes briiantis!

rsrrsrsr

Carlos Telles - Jd do Seridó/RN