quarta-feira, 5 de maio de 2010

Escritores não vão ao supermercado


Aos escritores, não bastar escrever. É preciso parecer escritor. Escritores precisam ter um ar de quem vive e está à parte do todo. Escritores precisam ter um olhar vago mas que não pareça perdido. Necessitam expressar, pelo olhar, a capacidade de enxergar o que a gente normal não alcança. No rosto, escritores devem guardar a feição de quem tem muita piedade dos demais - a massa incapaz de ver o que só alguns têm não apenas capacidade de divisar, mas preparo para suportar. Escritores precisam falar com um andamento meio zen de quem tem quatro décadas a mais do que a idade real, ou aquela que aparenta, embora ao mesmo tempo precisem sugerir um tipo particular de inquietação e juventude conservada.

Escritores precisam saber se vestir, de maneira a não cometer o pecado genérico de usar roupas comuns. Mas também não podem diferir de maneira tal da indumentária geral a ponto de trair, pela excentricidade dos trajes, veleidades vulgares, inconciliáveis com a sobriedade cinza de sua visão de mundo. Escritores devem saber se deixar fotografar nas poses certas, uma maneira Albert Camus de se fixar no papel fotográfico do tempo. Estão liberados para folhear durante horas e horas as revistas culturais no intuito de descobrir as sutileza de tais ângulos. Geralmente, é de lado, olhando para o nada, exalando uma espécie intensamente particular de inteligência trabalhada, fazendo sorrisos pela metade que tanto provocam empatia quanto repulsa - e a medida certa dessa mistura pode ou não botar uma carreira a perder. Ah, sim, e de preferência, se possível, sempre em branco e preto, porque a cor, essa vulgaridade moderna, borra a impressão de seriedade quase cristã que o escritor venera com o mesmo fervor com que nega essa banalidade que é a crença religiosa dos comuns.

Escritores precisam tomar cuidado ao revelar suas influências, não devem citar nomes ordinários demais, outros pares seus que caíram nas graças das massas; é de bom tom recolher, para tais ocasiões, representantes de estilos e literaturas ainda semidesconhecidas, de maneira que ele próprio, o escritor entrevistado, pareça iluminar o caminho dos mortais leitores, ainda que estes tenham pouquíssimas chances de acesso aos citados autores semidesconhecidos. O mais importante, contudo, é que o escritor jamais deve, em hipótese alguma e situação nenhuma, citar seus contemporâneos de ofício. Escritores devem ser e se sentir únicos - ao lado deles, a par da atividade deles, praticando a mesma escrita no mesmo momento (e na mesma cidade, então) não devem, absolutamente, existir. Não há espaço para mais de um escritor no mesmo bairro, quanto mais na mesma cidade. Citar os pares, definitivamente, nunca.

Escritores, em geral, são únicos - ou assim se consideram. Não por outro motivo, de pequenos escritores há bastante, sem que cada um, no seu canto, sequer desconfie da existência dos demais.

Já os grandes escritores, estes dependem menos dos pares ocultados e mais dos leitores massificados. E de sua certificação, só o tempo dirá.

Nenhum comentário: