segunda-feira, 24 de maio de 2010

Herivelto, Dalva, Nelson e Orson


O mote é o enrelo dramático e novelesco, cheio de explõsões de raiva e também de rancores repressados no relacionamento entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, mas ao largo do relato também comovem e impressionam dramas outros, de personagens do mundo da música e dos cassinos que orbitavam em torno do casal. Depois da minissérie de tevê, o livro ficou bem conhecido e está em destaque nas vitrines das livrarias. É "Minhas duas estrelas", um vasto, emocionado, pungente e ao mesmo tempo
sensato depoimento de Peri Ribeiro sobre o que ele viu desde menino no lado tanto público quanto privado da epopéia amorosa e profissional de seus pais. A minissérie da tevê era atrativa na sua narrativa de idas e vindas que marcaram a vida de Dalva e Herivelto, algemados por uma legítima paíxão tipo anos 40 e um contrato invisível de trabalho que fazia com que um dependendesse - e não só afetivamente - do outro, mesmo quanto já estavam definitivamente separados.

Peri surpreende em distanciamento no livro, sobretudo nos capítulos finais, em que tenta, mais do que contar o que viu e aquilo por que passou, analisar o que de fato houve entre seu pai e sua mãe. O diagnóstico dele para esse caso quase clínico de tempestade emocional permanente vem com uma clareza que não se espera de quem, garoto ainda, suportou o pior dos mundos, vivendo entre internados improvisados, escolas afastadas, casas de parentes e - num certo período - até sem endereço certo, tudo devido à maneira tumultuada como esses dois gênios da música brasileira conduziram - diria melhor, não conduziram - seu casamento e os filhos que dele resultaram.

Mas para além disso já foi dito que impressiona também no livro os relatos breves - mas marcantes - dos dramas paralelos, conflitos igualmente com cores típicas daquelas tituras pesadas do Brasil dos anos 40 e 50, vividos por outros artistas do mundo da Urca de ouro da era pré-presidente Dutra. Vê-se no livro um Nelson Gonçalves cindido internamente pelo vício em drogas que até hoje em dia pode-se considerar tranquilamente como coisa da pesada - e ainda às voltas com um suicídio de paixão como nem na literatura mais clássica se vê com tal intensidade. Encontra-se também no livro o relato paralelo sobre as agruras de Grande Otelo, o artista soberbo que, fora do palco, virava gato e sapato nas mãos dos mulherões que cobiçava.

Mas a história à margem de Dalva e Herivelto que mais impressiona o leitor é a de um mito internacional vivendo seus infernos particulares no Rio de Janeiro. Ele mesmo, Orson Welles, surge em "Minha vida com meus pais" no conhecido episódio do filme jamais concluído "É Tudo Verdade". Welles está no Brasil com a ambição de fazer uma produção megalomaníaca sobre um grupo de jangadeiros que faz uma jornada marinha de protesto navegando do Ceará até o Rio, então capital da República. Na reconstituição para o filme da chegada dos jangadeiros, morre acidentalmente o líder do grupo. O estúdio americano que produz o filme vai perdendo o interesse - e cortanto o envio de dólares para o enfant terrible do cinema de Tio Sam. O criador de "Cidadão Kane" mergulha numa depressão que o faz evitar a sucessão de festas mundanas e se refugiar, com a alegria possível, em temporadas na casa de praia que Dalva e Herivelto compraram justamente com o dinheiro pago a Peri (então, um menino de calças curtas), pelo desempenho como ator mirim do filme.

É triste mas também doce ver, pela narrativa de Peri, o desamparo de um cara como Orson Welles numa praia do estado da Guanabara: sentindo-se acolhido aqui embaixo da linha do Equador em meio a paisagem e pessoas anônimas, enquanto rumina a ruína de mais um projeto financiado pelos estúdios lá de cima. O fragrande em palavras construído por Peri humaniza essa criatura que assombra o sono de todo admirador do cinema. Diz um pouco mais sobre ele - e um tanto além sobre o Brasil de então, sobretudo para que não viveu suas dores, suas noites e sua trilha sonora onipresente saída da lavra de Herivelto Martins e interpretada pela voz de Dalva de Oliveira.

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