domingo, 26 de abril de 2009

Diretas, vaias, festivais e antiguidades


Um discurso gravado e registrado em LP me proporcionaram ontem à noite, depois que os meninos foram dormir e a casa ficou silensiosa, uma viagem a um passado que só conheço de leituras, filmes, memórias alheias e anotações históricas. Acabei de dar uma geral nos livros daqui de casa - esses portadores de pensamentos que não param de se reproduzir e não cabem mais em lugar nenhum - e pra relaxar fui direto às minhas pilhas de discos. Botei pra tocar aquele famoso disco de Geraldo Vandré que ficou proibido durante anos e só no início da década de 80 foi liberado, mas ainda com a censura impedindo a execução pública do hino violado "Pra não dizer que não falei das flores".
Já conhecia o disco, de ouvir ainda em Parelhas, emprestado por amigos ou com as principais faixas gravadas em fita k7. Mas não tinha o LP na minha coleção. Só aqui em Brasília acabei comprando um, numa loja especializada nessas antiguidades. Mas também nunca havia ouvido esse "Vandré" comprado aqui. Então fui: e descobri melodias familiares que me levaram de volta ao início da década de 80, quando muito ouvi o mesmo disco e depois o esqueci pra nunca mais, e ainda fui surpreendido por duas versões da música que mais incomodou os militares durante a ditadura que durante 20 anos sufocou o país. Há uma versão de estúdio, mais limpa, com Vandré e seu violão. Acho que, não tendo o LP, tive um compacto com essa versão no lado A. No lado B, vinha "Fica mal com Deus". Acho que quem lê esse blogue sabe o que é compacto, o que é lado A e o que é lado B, por isso não vou nem explicar. A outra versão da mais famosa composição de Vandré - e justamente aquela de que eu não lembrava - foi gravada ao vivo durante a final do Festival em que a música concorreu, e perdeu para "Sabiá", de Tom e Chico - uma pérola que também tem a cara dos embates da época, mas com uma dose de lirismo que o hino geraldiano não alcança.
Foi a versão ao vivo que me emocionou - e com aquele tipo de emoção inesperada que pega a gente de jeito, desprevenido e entregue. A faixa começa com as vaias - não para "Pra não dizer...", mas para o fato de a preferida do público mais engajado ter perdido para a lírica "Sabiá", igualmente política mas muito menos explícita. No discurso, entre vaias, Vandré, com uma voz grave e emocionada, tenta acalmar a platéia. É quando ele diz (e à medida em que o discurso saía do toca-discos, eu ia repetindo ele entredentes, percebendo que tinha aquele discurso decorado no fundo da memória, de tanto tê-lo ouvido): "Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Holanda merecem todo o nosso respeito", implora várias vezes "gente, gente..." antes de encerrar com uma frase que a gente pode aplicar para vários outros fins: "A vida não se resume a festivais".

Nesse sábado, não fui a nenhuma comemoração, não revi amigos com quem convivi em 1984, apenas vi uma reportagem lá na TV Câmara mesmo sobre os 25 anos, completados ontem, da derrota da emenda que poderia trazer de volta as eleições diretas para a Presidência da República. Mesmo assim, por meio da audição de um disco em vinil, as duas datas históricas, os dois anos significativos da trajetória política brasileira recente, acabaram se encontrando na minha pobre crônica: O 1968 do "Pra não dizer que não falei das flores" de Vandré, ao vivo no Maracananzinho, e o 1984 da frustração nacional das Diretas Já. Comemorei sozinho e secretamente a vitória tardia daquela derrota histórica de 84 ouvindo, numa noite quieta, uma canção que fala de 68 sobre o que é viver tendo "a certeza na frente e a história na mão".
E me senti feliz propriedade de um tempo que a cada dia que passa vai ficando mais e mais para trás: um tempo em que, com 19 anos de idade, a gente podia ser completamente tomado pela emoção de uma causa coletiva. E fazer dela ponto de referência para o exercício de viver a experiência de pertencer a um país incompleto, que dependia das nossas crenças, amizades, gestos e pensamentos, projetos um milímetro além do mero interesse pessoal.
(Esse texto é dedicado ao nosso amigo Kildare Rodrigues, pernambucano, jornalista e cidadão brasileiro que, tenho certeza, partilhou desses sentimentos enquanto com a gente dividiu o desafio de estar vivo.)

3 comentários:

Moacy Cirne disse...

Sem dúvida, um momento para ficar registrado em nossas memórias...
Em tempo: Diva Cunha está muito bem colocada no resultado final da enquete sobre os 10 Poetas Potiguares de nossa estimação, como você poderá ver, hoje, no Balaio e/ou no Substantuvo Plural.
Um abraço.

Moacy Cirne disse...

O Itans sangra desde ontem, meu caro. O Boqueirão também deve sangrar até amanhã (assim acredito). Apesar da preocupação natural com as populações rieirinhas, tudo é festa. E o Balaio comemora o fato - um fato que afeta positivamente o sertão e o nosso Seridó.

Um abraço.

ana sua mana disse...

tirou férias daqui, foi?
beijins.